[title]
Há uma cena em The Post, de Steven Spielberg, que emocionará quem ainda trabalhou em jornais no tempo da impressão a chumbo. Um repórter está, tarde da noite, a escrever à máquina na redacção do The Washington Post (a acção passa-se em 1971, quando ninguém sonhava sequer com computadores nos jornais), e de repente o edifício começa a vibrar levemente: as máquinas foram ligadas para imprimir a edição do dia seguinte. A recriação ao pormenor que o filme faz desses tempos pré-informatização da imprensa é impecável.
The Post conta como o The Washington Post, à época propriedade da milionária Katharine Graham (Meryl Streep) publicou os Pentagon Papers, um estudo secreto do governo sobre o envolvimento político e militar americano no Vietname entre 1945 e 1967, que foi passado ao The New York Times por Daniel Ellsberg, que tinha trabalhado nele.
Quando a administração do presidente Richard Nixon conseguiu, por via legal, que o Times deixasse de publicar o documento, invocando a segurança nacional, o Post desafiou essa proibição e retomou a publicação do material. O caso foi resolvido pelo Supremo Tribunal dos EUA, que se pronunciou, por maioria, a favor da publicação, em nome da liberdade de imprensa e do interesse dos cidadãos.
A fita de Spielberg é, através da história do braço de ferro entre o jornal e a Casa Branca, uma ilustração dramatizada da Primeira Emenda da Constituição americana, que defende a liberdade de imprensa e de expressão. E glosa um formato clássico, o thriller de imprensa, em que jornalistas idealistas lutam pela publicação de notícias de relevância e interesse geral, contra aqueles que os querem impedir ou amordaçar.
O melhor de The Post é exactamente a descrição do trabalho dos redactores do jornal, nessa era da máquina de escrever e do papel, sem net nem telemóveis, sob a direcção de Ben Bradlee (Tom Hanks), para obterem os documentos, trabalharem neles, fazerem os artigos e cumprirem os prazos de fecho. Enquanto Graham é pressionada a não publicar por membros do seu conselho de administração, já que isso a poderá levar, e a Bradlee, à cadeia, e comprometer as licenças das estações de televisão da empresa.
O filme segue e celebra, com vibração e suspense, em linha recta narrativa e a mata-cavalos visual, esse trabalho jornalístico colectivo e o profissionalismo à antiga. Consulta insistente de fontes, muitos telefonemas e muito pé na rua, espionagem da concorrência (Bradlee envia um estagiário a Nova Iorque, para saber o que o Times tem para manchete), sessões conjuntas de decifração de milhares de páginas e escrita de artigos contra-relógio , tudo sob a tirânica pressão da hora de fecho.
Foi também a contra-relógio que Spielberg rodou The Post, após suspender a preparação de uma fita e enquanto fazia a pós-produção de outra, o que lhe dá, apesar da presença de estrelas como Hanks e Streep, um sabor de série B, e abona de novo a favor do consumado ofício cinematográfico do realizador.
Mas nem tudo são rosas em The Post, onde encontramos simplificações, liberdades dramáticas e distorções da realidade. O The New York Times acusou Spielberg de subalternizar o papel deste jornal na obtenção e divulgação exclusiva da história; o filme diaboliza a administração Nixon, quando os factos contidos nos Pentagon Papers se referiam a quatro administrações anteriores, duas delas tuteladas por presidentes dos Democratas, Kennedy e Johnson, amigos pessoais de Katharine Graham e do próprio Bradlee (há uma cena em que Bradlee percebe que a sua intimidade com John Kennedy lhe tolheu a capacidade crítica e o distanciamento profissional para com o poder); e o filme insiste em que a guerra do Vietname era uma causa perdida, quando Nixon estava a começar a conseguir ganhá-la e a criar condições para negociar a paz.
Os Pentagon Papers, e o Caso Watergate logo a seguir, fizeram muito para minar a confiança dos americanos no seu governo. Só que Spielberg não tem ironia – ou coragem – suficiente para dizer que, se nessa altura os americanos ainda confiavam nos media, estão a desligar-se deles nos nossos dias, por terem perdido o pulso do cidadão médio e serem arrogantes, politicamente correctos e quererem ditar como é que os leitores e os espectadores devem pensar.
Não foi por acaso que, em 2013, a família Graham vendeu o deficitário The Washington Post a Jeff Bezos, fundador da Amazon, marcando o fim de uma era deste jornal, e do jornalismo, nos EUA.
Por Eurico de Barros