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A família, e as várias formas que ela pode assumir para lá daquela que é estruturante das sociedades humanas e aceite tradicionalmente como modelo, são os dois grandes temas da obra do japonês Hirokazu Kore-eda, desde a sua primeira longa-metragem, Maborosi (1995).
Depois de O Terceiro Assassinato, um policial do qual também não estava ausente a problemática familiar, Kore-eda regressa a ela em pleno com Shoplifters – Uma Família de Pequenos Ladrões, que ganhou o Festival de Cannes este ano. O filme pode-se resumir em duas perguntas: o que é uma família? Será preciso haver laços de sangue entre aqueles que a compõem para a considerarmos como tal?
Os Shibata vivem ao monte numa pequena casa, nos subúrbios de uma grande cidade. O pai faz biscates na construção civil mas sustenta a família, roubando em lojas e mercados de bairro, acompanhado pelo filho de 12 anos. A avó, viúva, recebe uma pensão e também rouba de vez em quando, tal como a mãe, empregada numa lavandaria. Há ainda a filha adolescente, que trabalha num peep-show. Todos se dão bem, há sempre algum dinheiro e comida quente na mesa e o furto é encarado como normal. “As coisas nas lojas ainda não são de ninguém”, diz o alegremente amoral pai.
Uma noite, ele e o filho voltam para casa, quando vêem uma menina abandonada na rua, ao frio. Decidem levá-la para casa e dar-lhe comida e abrigo. A criança tem marcas de ser maltratada e sugere que a mãe a espanca. Apesar de saberem onde ela mora, e de verem na televisão as notícias do desaparecimento, os Shibata decidem adoptá-la como membro da família, ao ver como se sente feliz entre eles.
Na segunda parte, Shoplifters dá uma volta de 180 graus, que não pode ser revelada, sob pena de estragar o filme aos leitores. Digamos apenas que, sem sentimentalismo, sem agitar bandeiras de causa nem querer fazer proselitismo, Kore-eda mostra como uma família “falsa”, em manta de retalhos, pode escrever direito por linhas tortas, e até sem ter muita noção disso. E que é um cineasta com uma profunda compreensão da natureza humana, das suas singularidades e dos seus paradoxos.
Por Eurico de Barros