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Fialho de Almeida, o autor de Os Gatos e O País das Uvas, escreveu: “As boas tradições mantêm-se e cultivam-se. As más, esquecem-se.” A tradição ancestral que é o motor do enredo de Restos do Vento, o novo filme de Tiago Guedes (Coisa Ruim, A Herdade) escrito por ele e por Tiago Rodrigues, é posta de parte pela população da aldeia do interior de Portugal em que a história se passa, mas nem por isso deixa de ser esquecida, nem de condicionar o comportamento das personagens.
A acção começa em 1995, quando os rapazes da aldeia, usando roupas velhas com guizos, sacos a fazer de capuzes e empunhando cordas e vergastas, cumprem anualmente a velha tradição de andar pelas ruas a assustar as pessoas e a perseguir as raparigas. Na sequência do ataque a uma delas, que ameaça transformar-se numa violação em grupo, um dos rapazes, Laureano, que mora fora da aldeia, é brutalmente espancado pelos outros e deixado no meio da rua.
Quase 30 anos depois, os rapazes são homens casados e com família. Um deles, Samuel (Nuno Lopes), é um empresário com peso na região, separado da mulher e com um filho adolescente; outro, Paulo, comanda o posto local da GNR e é casado com Judite (Isabel Abreu), a rapariga que no passado protagonizou a agressão colectiva, por sua vez separada de Vítor (Gonçalo Waddington), que vai cumprir pena por causa de um negócio escuro em que se meteu, e do qual tem uma filha menor, Salomé (Leonor Vasconcelos).
Quanto a Laureano (Albano Jerónimo), ficou com sequelas graves do espancamento e é visto como o “tontinho da aldeia”. Vive numa casa isolada sem confortos básicos, sempre rodeado de um grupo de cães, fuma como uma chaminé e só Judite se preocupa com ele, levando-lhe mantimentos regularmente. Quando, numa noite de festa, o filho de Samuel é descoberto morto à beira da estrada, com os cães de Laureano a rodeá-lo, as suspeitas caem de imediato sobre este. Até que a autópsia revela que o rapaz foi esfaqueado.
A história de Restos do Vento mostra pés para andar até à altura da descoberta do cadáver, embora a partir daí eles vão ficando enfraquecidos pela previsibilidade. A identidade do assassino é telegrafada por antecedência, e quando a revelação chega não há surpresa nem comoção dramática. Mas o realizador consegue manter o controlo e o interesse da intriga, através de uma resolução que joga com o desespero, que fala mais alto que tudo (incluindo a amizade e o sentido do dever), e remete para a tradição local que já não está activa mas não foi esquecida e, mais profundamente, para os atavismos que estavam em hibernação mas nunca se extinguiram. E que exigem, hoje como no passado, um bode expiatório.
Tiago Guedes apanha bem o ambiente físico e humano da pequena e fechada comunidade em que a fita decorre e onde toda a gente se conhece, para o melhor como para o pior, usando-o para estabelecer o clima de crispação e de incerteza em que o enredo se banha; e tira bom efeito visual, sonoro e simbólico das enormes torres eólicas que agridem a paisagem (a propósito de som, há vários momentos em Restos do Vento em que não conseguimos ouvir os actores nem perceber o que estão a dizer). O trabalho do elenco é correcto e coeso, mas há que salientar Isabel Abreu numa Judite sensível e bondosa, mas cujo instinto maternal de protecção fala mais alto do que tudo, e a jovem Leonor Vasconcelos, que interpreta Salomé como um bicho esquivo, monossilábico e permanentemente inquieto, que parece temer até o vento que nunca pára de soprar.