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Uma mulher transformada em urso; um rapaz tornado águia; um menino a virar camaleão. Não, não é mais um remake de A Ilha do Dr. Moreau. É uma raridade, um filme de ficção científica francês, Reino Animal, de Thomas Cailley, no qual uma misteriosa doença que atingiu todo o mundo está a transformar, lentamente, muitas pessoas em toda a sorte de animais (porquê, Cailley nunca nos explica, nem se é contagiosa; teria sido bom ao menos um nadinha de background científico plausível – é por estas coisas que a literatura de ficção científica é consistentemente superior ao cinema do género). Seja como for, as pessoas estão cada vez mais perplexas e preocupadas com o sucedido, e com a possibilidade de também se poderem tornar vítimas da mutação.
A mulher de François (Romain Duris), um chef, foi atingida, está a tornar-se num animal e teve que ser levada para um sítio convertido de emergência em centro de acolhimento dos mutantes, longe de Paris. Depois de arranjar um emprego perto de lá, o homem pega no filho adolescente, Émile (Paul Kircher), e mudam-se para um bungalow. Só que também Émile, que poderá ter sido infectado pela mãe, está a mostrar sinais perturbadores de mutação e poderá estar a transformar-se num lobo, o que procura ocultar quer do pai, quer dos colegas do novo liceu, principalmente de uma rapariga que simpatizou com ele.
Além da sua primeira e mais óbvia característica de enredo de ficção científica, Reino Animal é um filme que o realizador deixa aberto a outras interpretações, quase todas elas metafóricas. Por exemplo, pode ainda ser sobre as complicadas transformações físicas sofridas pelos jovens durante a adolescência, e que vêm encorpar a história secundária da relação pai-filho, que se tornou muito tensa devido à situação da mãe; ou sobre (bocejo) o medo do “outro”, a hostilidade ao “diferente” e a necessidade da tolerância; ou pode ainda ser uma fábula de intenções ecológicas fofinhas, em que as mutações são uma “vingança” da natureza sobre a espécie humana que a está a depredar e destruir pouco a pouco.
Após um início e um desenvolvimento conseguidos, e cujo impacto sobre o espectador deve muito à qualidade e credibilidade dos efeitos especiais, que combinam maquilhagem e próteses tradicionais, e computadores (a transformação de Fix numa grande ave de rapina é impressionante), e ao facto de a transição ser gradual e não súbita e espalhafatosa, afectando o físico e a mente dos contaminados, que vão pouco a pouco largando as emoções, os laços e as memórias que os ligavam ao mundo humano, Reino Animal vai-se tornando cada vez mais adivinhável e convencional à medida que se aproxima do clímax (ver a inevitável perseguição a Émile pelos locais assustados). E a ideia final, de que os animais que já foram humanos não se perseguem nem matam uns aos outros como predadores e presas normais, e vão coexistir na floresta numa espécie de nova e exemplar “comunidade”, é ingénua e piedosa.
Thomas Cailley desperdiça Adèle Exarchopoulos no papel de uma mulher-polícia que se envolve com François, mas o filme pertence a Paul Kirch, pela forma totalmente convincente como integra os pequenos detalhes de comportamento e as alterações no modo de ser que marcam a sua transformação em animal, tornando palpáveis o desconcerto e o pânico da personagem, e tornando aflitivo e dramático aquilo que de outra forma seria embaraçoso e risível. O efeito de body horror é, em Reino Animal, tanto mais incómodo, assustador e verosímil, quanto podemos sentir que nos poderia acontecer, e àqueles que nos rodeiam, e não é apenas algo que sucede a uma personagem de ficção num enquadramento fantasioso. É o bicho, é o bicho – e podíamos ser nós.