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E no meio da produção de Hollywood que domina tipicamente os verões, eis que surge uma daquelas reposições de estalo em cópia restaurada, vindas de uma outra latitude cinematográfica, e assinada por um mestre do cinema já desaparecido.
Desta vez é Ran – Os Senhores da Guerra, realizado por Akira Kurosawa em 1985, o segundo de dois filmes, após Trono de Sangue (1957), em que o cineasta se inspirou numa peça de William Shakespeare (Macbeth para aquele, Rei Lear para este). Embora haja quem defenda que The Bad Sleep Well (1960) deve também a Hamlet.
“Ran” significa, em japonês, caos, confusão, revolta. E é precisamente isso que Kurosawa filma, com uma turbulência épica e uma superior mestria visual, após o velho e poderoso senhor feudal Hidetora (Tatsuya Nakadai, um dos actores de eleição do realizador) haver cometido a imprudência de dividir as suas possessões pelos seus três filhos, sob o protesto de um deles. Saburo, o mais novo e sensato, ciente de que a cobiça pelo poder acabaria por os dividir e causar a guerra, acaba banido pelo pai.
Tal como já havia feito em Trono de Sangue, Akira Kurosawa volta a combinar a influência do teatro Nô, a tragédia ocidental de matriz shakespeariana e a espectacularidade bélica do filme histórico de samurais (ou Jidaigeki) que ele cultivou como nenhum outro. Os momentos mais altos da fita são a batalha no sopé do Monte Fuji e o ataque à fortaleza de um Hidetora transfigurado de vergonha por ter falhado o seu harakiri, e de horror por ver o seu mundo sucumbir às mãos dos próprios filhos. Kurosawa estava já com sérios problemas de visão quando rodou Ran – Os Senhores da Guerra. Valeu-lhe o meticulosíssimo storyboard do filme, plano por plano, que desenhou e pintou ao longo de dez anos, e graças ao qual, com a ajuda dos seus assistentes para fazer os enquadramentos, conseguiu rodar.
Por Eurico de Barros