Em maedos da década de 80, Tommaso Buscetta, um importante membro da Cosa Nostra, a máfia da Sicília, tornou-se num dos primeiros arrependidos da história desta organização, fornecendo informações ao juiz anti-máfia Giovanni Falcone. Alguns anos mais tarde, a sua delação levaria à prisão de Totò Riina, o líder da Cosa Nostra, desferindo um sério golpe na organização, e conduziria até o antigo primeiro-ministro Giulio Andreotti à barra do tribunal (seria ilibado).
Há em Itália uma longa tradição de “filmes de máfia” (e de séries e telefilmes), sejam mais policiais e de acção, sejam mais documentais ou políticos. O Traidor, de Marco Bellochio, que conta a história de Buscetta, essencialmente a partir da altura em que passou a colaborar com as autoridades, é uma contribuição maior para este acervo.
Bellochio apresenta-nos um Buscetta membro da Cosa Nostra “à antiga”. Isto é, antes que o tráfico de droga tenha substituído o de tabaco como a mais lucrativa actividade da organização, levando o monstruoso Riina ao poder, desencadeando uma guerra no meio do crime siciliano e fazendo tábua rasa dos valores que a orientavam (nunca matar mulheres ou crianças, por exemplo).
A certa altura, Buscetta (o magnificamente sóbrio Pierfrancesco Favino, que já vimos em Romanzo Criminale ou em Suburra), diz a Falcone ser um desses “homens de honra” dos tempos pré-tráfico de droga e massacres indiscriminados. Ao que este responde estar farto do “mito da máfia nobre e honrada”. Bellochio não minimiza o passado criminoso de Buscetta, mas deixa claro que além da protecção da família, ele decidiu delatar por estar revoltado e chocado com a brutalidade sádica e cega de Totò Riina, que vitimou filhos seus, parentes e amigos. Para Buscetta, o verdadeiro traidor é Riina e não ele.
Às sequências rigorosamente encenadas dos julgamentos, o realizador junta ainda, graças aos efeitos digitais, uma espantosa recriação do atroz assassínio de Falcone, filmada de dentro do carro do próprio juiz. A palavra predomina em O Traidor, mas Marco Bellochio nunca se esquece que está a fazer cinema e não apenas uma dramatização diligente, rígida e verbosa de acontecimentos reais.
Eurico de Barros