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Podemos tirar um curso sobre Alfred Hitchcock indo apenas ao YouTube, onde se encontram inúmeros documentários sobre o autor de Janela Indiscreta e as suas fitas, do mais excelente ao mais banal. Hitchcock deve ser dos realizadores sobre o qual foram escritos mais livros, teses e artigos, e feitos mais filmes documentais e programas de televisão. A sua vida e a sua filmografia já foram analisadas, interpretadas, escrutinadas e esmiuçadas de todos os pontos de vista e em todas as direcções, e sob a luz das mais variadas teorias, e nem sequer escaparam recentemente à sanha do wokismo e do feminismo radical.
Mas nunca ninguém tinha pensado em fazer o que Mark Cousins fez em O Meu Nome é Alfred Hitchcock. Pegar num imitador e comediante para narrar, com a voz do próprio Hitchcock, um documentário sobre o realizador e os seus filmes. Chama-se ele Alistair McGowan e a sua imitação da voz do mestre do suspense é brilhante e assombrosamente convincente, do peculiar ritmo do discurso aos tiques, idiossincrasias verbais e ao sotaque, e de tal forma, que é como se o filme fosse comentado pelo próprio de além-túmulo. O atrevimento de Cousins chega ao ponto de pôr na ficha técnica que o documentário é “escrito e narrado por Alfred Hitchcock”.
Pela parte que calha a McGowan, dir-se-ia que sim, e Cousins consegue passar perfeitamente a impressão de que o seu comentário pertence na realidade a Hitchcock (até finge responder-lhe aqui e ali a uma ou outra questão técnica). Ele torna plausível, e durante duas horas, que o autor de Intriga Internacional podia mesmo ter dito tudo o que Mark Cousins põe na boca de Alistair McGowan sobre a sua vida, os seus filmes e o seu estilo, inspirações, dispositivos técnicos, truques, intenções, interpretações e significados (Hitch até pede desculpa retroactivamente pelos efeitos especiais de Os Pássaros…).
Mas não é só a voz de Hitchcock que está aqui em causa. É também a “voz” da sua personalidade, do seu modo de ser, ver e pensar, e do seu entendimento do cinema tal como o expressou na sua obra. Até o humor seco e irónico do realizador pica o ponto, e logo a abrir o filme, quando comenta a enorme estátua da sua cabeça que se encontra no jardim de um bairro da sua Londres natal. (A única coisa que destoa em O Meu Nome é Alfred Hitchcock são os inserts contemporâneos pirosos que pontuam o documentário em meia dúzia de ocasiões, e podiam ter sido dispensados.)
É claro que Cousins leva esta sua arriscadíssima aposta avante graças ao profundo conhecimento que tem da obra do realizador, e à sua perspicácia analítica e à capacidade de olhar para uma fita, uma sequência ou uma imagem já analisadas até ao tutano e encontrar algo que ninguém viu antes, fazer uma associação inédita, arriscar uma interpretação original. Em O Meu Nome é Alfred Hitchcock, ele organiza a filmografia de Hitchcock em seis grandes temas – Fuga, Desejo, Solidão, Tempo, Realização e Altura – sem se esquecer de referenciar a sua vida pessoal e conjugal, a sua capacidade de auto-promoção e o seu estatuto único na história do cinema.
Mark Cousins vai depois buscar imagens de praticamente todos os seus filmes, incluindo os menos vistos ou reconhecíveis, para ilustrar a sua visão da obra do cineasta, realçar a ideia primeira e eminentemente visual por que ele sempre se orientou, a sua capacidade de fundir arte e indústria, e estética e sentido do espectáculo, e os seus dotes de supremo manipulador: das capacidades do seu meio de eleição, o cinema, como das expectativas e das reacções do público. E sempre como se as suas palavras saíssem da boca do próprio Alfred Hitchcock, e o seu raciocínio, apreciação e explicações fossem os deste. Só podemos aplaudir este fake refinadamente descarado que é O Meu Nome é Alfred Hitchcock, porque concebido e concretizado em nome da melhor e mais original e entusiástica cinefilia.