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É muito, muito raro, vermos fantasmas no cinema português, e há um em O Ano da Morte de Ricardo Reis, a adaptação do livro homónimo de José Saramago por João Botelho. E logo um fantasma de peso: o de Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto), que passa todo o filme a visitar o seu heterónimo Ricardo Reis (o brasileiro Chico Diaz), que aqui tem existência própria. Reis é médico e monárquico dos quatro costados e exilou-se no Brasil depois do falhanço da instauração da chamada Monarquia do Norte, em 1919. E volta a Lisboa em 1936, um mês depois da morte do seu criador, encontrando um país sob o regime do Estado Novo, e também o espectro de Pessoa.
Em vez de morrer de medo, Reis encara como perfeitamente naturais estas aparições do defunto, com o qual conversa longamente sobre a vida e a morte, sobre este mundo e o outro, sobre poesia e sobre as duas mulheres completamente diferentes com as quais se envolve. Lídia (Catarina Wallenstein), criada no hotel onde se hospeda quando chega à capital, e Marcenda (Victoria Guerra), a filha de um notável de Coimbra que está no mesmo hotel com o pai e que tem o braço esquerdo paralisado.
Depois de ter adaptado obras de Agustina (A Corte do Norte), Eça (Os Maias) e Fernão Mendes Pinto (Peregrinação), João Botelho continua aqui a sua jornada cinematográfica pelo cânone da literatura portuguesa. Filmando num preto e branco muito contrastado (que recorda outro filme do realizador, Tempos Difíceis, que transporta o livro de Charles Dickens para um contexto português), plúmbeo e fantasmagórico, Botelho tenta, mais uma vez, não ficar preso ao livro que passa para a tela, não deixar que o cinema fique submetido ao universo literário de que se apropriou, evitar que a imagem seja cativa da palavra.
Apesar deste esforço para que a fita não saia muito literária, o que passa por lhe dar uma personalidade visual poético-fantástica, embora ancorada numa real e reconhecível Lisboa dos anos 30, quer aproveitando locais ainda existentes, quer recriando outros (o Hotel Astória de Coimbra passa pelo desaparecido Hotel Bragança da capital), O Ano da Morte de Ricardo Reis acaba por se tornar repetitivo, monocórdico e bocejante, também pela escassez de peripécias vividas pela personagem principal (uma boa parte do enredo é ocupado pelos palavrosos encontros entre Reis e o espectro de Pessoa). Algumas das quais, aliás, servem apenas para ilustrar uma vulgata antifascista tão fatigada como previsível (agentes da PIDE viscosos, porteiras coscuvilheiras e delatoras, burgueses bem-falantes colados ao regime, um comício roncante da União Nacional no Campo Pequeno).
Há ainda outro problema. Nem sempre conseguimos perceber bem o que diz Chico Diaz, já que a tentativa do actor brasileiro de falar português com o sotaque de um português que viveu quase 20 anos no Brasil, não resulta em pleno. Sobretudo quando contracena com um actor com uma dicção tão impecável como Luís Lima Barreto.