Não Sou Nada – The Nothingness Club
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Crítica

Não Sou Nada – The Nothingness Club

3/5 estrelas
‘Não Sou Nada’, de Edgar Pêra, vai mais longe do que qualquer outro filme em que Fernando Pessoa apareça ou que trabalhe a sua figura e obra.
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A Time Out diz

Entre Camões e Fernando Pessoa, o segundo ganha facilmente ao primeiro em termos de adaptações e de presenças no cinema. João Botelho já o filmou em Conversa Acabada (1981), a sua primeira-longa metragem, Filme do Desassossego (2010) e O Ano da Morte de Ricardo Reis (2020); José Fonseca e Costa pegou em O Que o Turista Deve Ver para fazer o documentário Os Mistérios de Lisboa (2009); Luís Vidal Lopes fez do poeta o protagonista de Mensagem (1988); Fernando Carrilho rodou Ophiussa – Uma Cidade de Fernando Pessoa (2011); o italiano Giulio Base adaptou O Banqueiro Anarquista (2018); e há ainda curtas-metragens várias e telefilmes de nomes como Eduardo Geada, Rita Nunes, Pedro Varela ou Eugène Green.

Edgar Pêra já tinha tocado na obra do autor de Mensagem na curta-metragem Lisbon Revisited (2014), e volta agora a território pessoano em Não Sou Nada, que é decerto a mais original, heterodoxa e fantasiosa incursão de um cineasta português pelo universo de Fernando Pessoa. Escorando-se num argumento quase todo composto por palavras de poemas e textos variados do poeta, Pêra imagina Fernando Pessoa como o director de uma editora, a Nothingness Club (que podia ser também uma repartição pública, um escritório de empresa ou uma redacção), onde os seus heterónimos e semi-heterónimos, todos vestidos como ele, identificados por rótulos nos casacos, batem furiosamente nas teclas das suas máquinas de escrever, preparando o número 23 da revista Orpheu.

O realizador vai ainda mais longe em termos de visualização imaginativa do singularíssimo mundo de Fernando Pessoa (um Miguel Borges convincente assim que aparece). Não Sou Nada banha parcialmente numa pronunciada atmosfera de filme “negro”; cruza realidade biográfica com ficção mirabolante, mistura onirismo e especulação; desdobra Ofélia Queiroz (Victoria Guerra) em enfermeira de um hospício e secretária ultracompetente, e em mulher fatal de policial de Hollywood; e faz de Álvaro de Campos (Albano Jerónimo) o mais proeminente, inquieto, antipático e revoltado heterónimo de Pessoa, quase tomado por desejos de se sobrepor ao poeta ortónimo e que no final protagoniza uma cena de tiroteio saída de um filme de gangsters dos anos 30.

E curiosamente, Faustino Antunes, que nem um semi-heterónimo de Fernando Pessoa chegou a ser, antes uma personalidade que este concebeu para, numa altura da sua vida em que sentiu “o medo da loucura”, escrever a dois dos seus antigos professores e a um condiscípulo do tempo em que vivia na África do Sul, para lhe pedir informações sobre si próprio, tem aqui uma projecção na razão inversa da sua importância na obra do poeta, surgindo associado às preocupações deste com a sua condição mental (Edgar Pêra dá demasiado tempo de antena ao tema da loucura associada a Pessoa, com sequências a mais, e muito prolongadas, no hospício).

Muito longe de uma qualquer abordagem convencional, arrumadinha, explicativa ou didáctica à figura de Fernando Pessoa, ao seu mundo de heterónimos e à sua obra literária, Não Sou Nada é um filme que parece decorrer ora dentro da sua cabeça, ora num mundo exterior que também não é o nosso nem aquele em que Pessoa viveu, sendo percorrido por um quase constante alvoroço anárquico, que encontra correspondência no torvelinho mental, na vertigem de personalidades e no tumulto intelectual que o assaltam. Ortónimo, heterónimos e semi-heterónimos convivem e entrechocam-se, e falam uns com os outros, e com o espectador, usando quase sempre as palavras que Fernando Pessoa escreveu.

No final, o poeta acaba sozinho à secretária. Depois de tanta agitação de identidades, o sossego só dele próprio. Goste-se ou não, estranhe-se ou entranhe-se, a verdade é que nunca antes se tinha visto Fernando Pessoa no cinema português como em Não Sou Nada.

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