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As discussões sobre se Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés é o melhor filme alguma vez feito vão durar para sempre. Mas o melhor filme sobre Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés (e provavelmente sobre qualquer outro filme) é este. Definitivamente. O 11.º filme de David Fincher é uma pródiga carta de amor à velha Hollywood em toda a sua glória, cinismo e extravagância. É trabalhado com o tipo de elegância monocromática que implora para ser absorvida no grande ecrã – embora a televisão sirva perfeitamente por enquanto.
“Mank” é Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman), o dramaturgo irreverente, encharcado em álcool e viciado no jogo a que Orson Welles (Tom Burke) recorre para o ajudar a escrever o guião de Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés. Trata-se de um dos melhores escritores de Hollywood, um talentoso dramaturgo da Broadway aliciado pela promessa de muito dinheiro e pela possibilidade de desempenhar o papel de bobo sagrado numa corte de magnatas movidos pelo ego. Mas, para pormos as coisas educadamente, Mank é uma pedra no sapato de Tinseltown, e Oldman tira todo o partido de cada aparte espertalhão, de cada tirada arrogante e grandiloquente, num argumento que é rico em ambos.
Esse argumento é a conquista póstuma do pai de Fincher, Jack, cuja história estava a aguardar financiamento desde 1997. Ou talvez estivesse apenas à espera que aparecesse a Netflix, porque quando Welles se gaba a Mankiewicz de conseguir sempre a “edição final, tudo final” para Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés, esse pedaço de diálogo conta a dobrar para Mank. Este opus de época, feito a preto e branco, sobre um argumentista relativamente desconhecido não é exactamente o que chamaríamos de uma proposta mainstream, e Fincher tem carta branca para usar todos os brinquedos e técnicas à sua disposição. Mas não é preciso ser um cinéfilo empedernido para o ver. Nem por sombras.
Mank apresenta o seu protagonista em 1940, a caminho da ruína: um acidente de carro deixa-o acamado, e Welles assegura-se de que a cama em questão esteja num remoto rancho da Califórnia, onde uma secretária britânica, Rita Alexander (Lily Collins, Emily in Paris), e uma fisioterapeuta alemã (Monika Gossmann) conseguem mantê-lo longe da bebida por tempo suficiente para cumprir o seu exigente prazo.
Um flashback faz-nos então retroceder uma década. Dá-nos a ver uma versão de Mank em plena actividade, alinhavando com os seus colegas novas ideias para filmes, no escritório do patrão da Paramount, David O Selznick, antes de passar para a órbita do fanfarrão Louis B Mayer, o manda-chuva da MGM (Arliss Howard interpreta-o carregando na malícia e na intimidação). Esta fase do filme é um quem-é-quem das mais altas figuras de Tinseltown que nunca cai na caricatura, uma enfermidade de que padecem outros filmes sobre a indústria do cinema. As estrelas surgem de forma tão densa e rápida que nem se sente particularmente a ausência de uma Joan Crawford aqui ou um Charlie Chaplin ali.
Mank está completamente comprometido com o seu estilo wellesiano, com fades teatrais no fim das cenas, eco nas misturas de som, uma banda sonora de Trent Reznor e Atticus Ross a pedir meças a Bernard Herrmann, e uma grande profundidade de campo. O director de fotografia, Erik Messerschmidt, emula o seu homólogo de Kane, Gregg Toland, capturando cada troca de olhar conspirativa e desdenhosa nos planos de fundo das cenas de festa sumptuosamente encenadas. Messerschmidt baseia-se na autenticidade da cinematografia daquele período, certificando-se de que o seu trabalho nunca se transforma num pastiche.
Há poucas coincidências quando está em causa Fincher, e o número de britânicos no elenco não será uma delas. O realizador persegue deliberadamente um estilo de época no que diz respeito à interpretação, e encontra-o em Collins, toda Vivien Leigh e Deborah Kerr. As cenas delicadas com Oldman são pontos altos e podem mesmo merecer-lhe o reconhecimento da Academia nos Óscares. A contenção também lá está, com a interpretação que Charles Dance faz de William Randolph Hearst, o magnata da imprensa que inspirou a personagem Charles Foster Kane. O “Cidadão Hearst” é uma besta completamente diferente do magnata ficcional: uma presença taciturna e vampiresca nas festas em que é ele próprio o anfitrião, num castelo semelhante a Xanadu. É numa dessas festas que Mank finalmente – e fatalmente – vai para fora de pé.
Nada falha. Burke é maravilhoso, como sempre, apesar de um nariz protético que, de perfil, o faz parecer tanto Sam, a Águia (dos Marretas) quanto Orson Welles. Tuppence Middleton é demasiado jovem para interpretar a mulher de Mankiewicz, Sara (um casal que na vida real é da mesma idade). Mas a actriz faz um excelente trabalho em diálogos que decorrem sobretudo por telefone, enquanto a vida do marido se transforma num furibundo caos. Amanda Seyfried está na melhor forma de sempre como Marion Davies, a amante de Hearst, alguém muito mais inteligente do que a personagem que terá inspirado em Citizen Kane – O Mundo a Seus Pés, Susan Alexander.
Inevitavelmente satisfatório é o show de Oldman. Seja em cenas que o têm preso à cama, seja rezingando espirituosamente com os anfitriões de mais um sarau decadente, ou distanciando-se das corrosivas alianças políticas de Hollywood, Oldman é magnético. Interpreta Mank como um patife adorável, com uma língua que o põe em apuros e uma caneta que o salva deles. A última vez que Oldman deu corpo a um alcoólico na década de 1940, ganhou um Óscar por isso. Não será surpreendente se isso voltar a acontecer.