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Como muitos dos seus filmes, Folhas Caídas, de Aki Kaurismaki, Prémio do Júri no Festival de Cannes, parece passar-se na Finlândia de hoje, embora esteja cheio de sinais contraditórios. Quando as personagens ligam a rádio, só se ouvem notícias da guerra entre a Ucrânia e a Rússia, e a paisagem da cidade (Helsínquia?) em que a história decorre é contemporânea. Mas, por outro lado, os cinemas estão cheios de cartazes de filmes dos anos 40, 50 e 60, de Breve Encontro a O Desprezo, e os bares têm jukeboxes de onde sai rock antediluviano. Digamos, para arrumar o assunto, que Folhas Caídas se passa num país chamado Kaurismakilândia.
Não há nada de particularmente novo no filme. Aki Kaurismaki faz, essencialmente, sempre a mesma coisa, e exactamente da mesma maneira, de uma fita para a outra. Conta micro-histórias de personagens que passam por tempos difíceis e não têm sorte nenhuma na vida, losers sem amor, solitários na penúria, refugiados ou migrantes clandestinos, cujas esperanças e desejos são desprezados ou esmagados por essa abstracção chamada “sociedade” (em geral corporizada por figuras com autoridade limitada e pequenos poderes – em Folhas Caídas, são seguranças e gerentes de supermercados, e capatazes de obras), mas que no final conseguem quase sempre encontrar algum afecto, conforto e mesmo realização (ver Nuvens Passageiras, de 1996, talvez o melhor e mais exemplar filme do realizador.
Formal e dramaticamente, a receita é sempre igual. Uma câmara que pega de estaca do começo ao final da fita e muito raramente se movimenta; uma paleta de cores exagerada, dos cenários à roupa das personagens, que têm traços de caracterização excêntricos; interpretações “brancas”; a mesma inexpressividade de tom na comédia como na tragédia (o que não significa distância da história e das pessoas) e muito rock nostálgico na banda sonora. Mas sobretudo há muito afecto, identificação e respeito pelas personagens, embora nunca expresso em termos melodramáticos ou emocionalmente exibicionistas. Além de um estilista reservado, Aki Kaurismaki é um humanista recatado (e tem um poder de síntese cada vez mais raro no cinema: Folhas Caídas conta-se em 81 minutos).
O par romântico (por assim dizer) de Folhas Caídas é composto por Holappa (Jussi Vatanen), um operário metalúrgico que está sempre a ser despedido porque bebe demais, e no trabalho, e Ansa (Alma Pöysti), que vai trabalhar para uma fábrica depois de ser também despedida por levar, do supermercado onde está empregada para casa, comestíveis cuja data de validade expirou. Holappa e Ansa encontram-se num bar de karaoke, onde foram levados por amigos, e depois vão andar desencontrados durante quase todo o resto do filme, por causa de números de telefone perdidos (os telemóveis parecem daqueles dos anos 90, ninguém aqui tira selfies ou faz vídeos para pôr na Internet), acidentes com eléctricos e do alcoolismo de Holappa.
A história é ora macambúzia, ora cómica, embora nenhuma das personagens quase nunca se ria, e apesar da inexpressividade geral e do clima de understatement radical, Aki Kaurismaki consegue instilar emoção, riso, tristeza, melancolia ou significado em cada sequência. No final de Folhas Caídas, Holappa e Ansa acabam por ficar juntos, pobres mas felizes, com um cão acrescentado à fotografia do casal, um vadio que apareceu na fábrica onde aquela trabalha e ela recolheu. Ficamos a saber no último plano da fita que o animal se chama Chaplin. E com este nome o realizador deixa a principal referência do seu cinema. Aki Kaurismaki é um cineasta chaplinesco por excelência. Folhas Caídas até podia ser um filme mudo.