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Flee – A Fuga, do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, esteve candidata a três Óscares e é uma expressiva, impressionante e conseguida animação documental virada para um público adulto.
Na deplorável cerimónia dos Óscares deste ano, a estatueta de Melhor Longa-Metragem de Animação foi anunciada por três actrizes que deram voz a princesas da Disney, ou as vão interpretar, em filmes deste estúdio, e que no seu discurso deixaram implícito que os filmes animados se dirigem essencialmente às crianças e aos mais novos. Isto quando um dos cinco nomeados, Flee – A Fuga, do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen, era o perfeito exemplo de uma longa-metragem animada dirigida a um público adulto e abordando um tema da actualidade com o valor documental, a qualidade, a seriedade e o impacto de um filme de imagem real.
Conjugando animação tradicional, digital e imagens de arquivo, Flee – A Fuga, conta uma história verdadeira, embora os nomes das pessoas envolvidas tenham sido alterados para preservar o seu anonimato e por razões de segurança. O protagonista, Amin, é um amigo de juventude do realizador (que aparece a filmá-lo e a entrevistá-lo enquanto ele lhe conta a sua odisseia), um afegão homossexual refugiado na Dinamarca há muitos anos. Amin protagonizou uma incrível odisseia, desde que deixou o seu país na companhia da mãe, do irmão mais velho e das duas irmãs, em 1989, após a derrota do ocupante soviético e da vitória dos talibãs, que um dia a sua casa foram buscar o pai, piloto da força aérea, para nunca mais ser visto pela família.
Não é por acaso que Amin é filmado deitado num divã. São anos e anos de recordações reprimidas, e de mentiras necessárias ou piedosas, que revela ao seu amigo, como se estivesse no consultório de um psiquiatra. Ele conta como fugiu com a família de Cabul para a então União Soviética, com vistos de turista que depois caducaram; como viveram com dificuldades e medo num apartamento de uma Moscovo em convulsão após o fim do comunismo, evitando sair à rua e serem maltratados por malfeitores ou polícias corruptos; como fugiram para a Suécia dentro de um contentor num navio com outros refugiados, e depois no porão sobrelotado de um instável barco de pesca, e acabaram interceptados, levados para a Estónia e devolvidos a Moscovo; e como, finalmente, Amin conseguiu ir de avião para Estocolmo e, lá chegado, dizer-se órfão para conseguir asilo, deixando a mãe e o irmão para trás porque só havia dinheiro para pagar um passe a um traficante de pessoas.
Uma vez na Dinamarca, instalado em casa do irmão mais velho, que lá vivia há alguns anos e havia acolhido antes as duas irmãs, Amin teve que arcar com o sentimento de culpa de
haver deixado a mãe e o irmão em Moscovo; teve que ocultar aos amigos e ao futuro marido quase tudo deste seu dramático passado; e teve que interiorizar a sua homossexualidade (cuja percepção é evocada emflashback e com bom humor, nos seus felizes e despreocupados dias de juventude no Afeganistão, quando ele notou que era fã de Jean-Claude Van Damme, mas de uma forma especial). Homossexualidade que Amin julgava ser uma doença (chegou a ir ao médico em Estocolmo e pedir tratamento para ela).
Esta é uma história pessoal e familiar atribuladíssima, por vezes a roçar o inimaginável. Jonas Poher Rasmussen consegue captá-la e transmiti-la em toda a sua diversidade e complexidade de situações, pormenores e notações humanas, e com todo o seu sofrimento emocional e tormento psicológico, através de uma animação de pendor naturalista que faz perfeitamente as vezes de uma abordagem em imagem real e com actores, circulando entre o passado e o presente, e o geral e o íntimo, sem descontinuidades formais, estéticas ou narrativas.
Após receber os Prémios Europeus de Cinema em Documentário e Animação, Flee – A Fuga foi o primeiro filme do género a ser nomeado em simultâneo para os Óscares de Melhor Longa-Metragem Animada, Filme Internacional e Documentário de Longa-Metragem, e ainda o primeiro documentário candidato ao Óscar de Animação e a primeira animação ao de Documentário. Embora no final tenha ganho outra vez a Disney, há muita e muito variada vida para a animação lá fora. E Flee – A Fuga é uma das suas mais expressivas, impressionantes e conseguidas manifestações.