É uma situação clássica do cinema: a família junta-se para assinalar uma data festiva ou para comemorar um feriado, e depois a coisa dá para o torto. E o torto tanto pode dar para rir, como em Fim-de-Semana em Família, de Jodie Foster, para combinar o doce e o amargo, como em Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin, ou para escancarar as portas da tragédia, como em A Festa, de Thomas Vinterberg. O denominador comum de todos estes filmes, independentemente do seu género, do registo que adoptam e da maior ou menor ligeireza e gravidade das suas histórias: não há famílias perfeitas.
Festa de Família, de Cédric Kahn, que passou de raspão pelos cinemas alguns dias antes do primeiro confinamento e foi agora repescado pela HBO, instala-nos neste cenário familiar clássico. Um clã de Bordéus junta-se para comemorar, num dia de Verão, os 70 anos de Andréa, a matriarca (Catherine Deneuve a fazer de Catherine Deneuve). O tempo é que não está pelos ajustes e começa a chover torrencialmente, pelo que o almoço e o jantar, que estão a ser preparados em conjunto, têm que ser transferidos do jardim para dentro da ampla casa em que ainda vive grande parte dos membros da família. Mas não é só a meteorologia que vem contrariar os planos da festa de aniversário. Claire (Emmanuelle Bercot), a filha mais velha de Andréa, que anos antes foi para os EUA deixando para trás a filha, agora adolescente, para ser criada pelos avós, regressa a casa de repente e está tão imprevisível, tão descontrolada emocionalmente – e tão perigosamente perto da loucura, segundo alguns –, como no dia em que partiu sem dizer água vai. E Claire quer dinheiro, 200 mil euros, a sua parte da herança, ameaçando “pôr toda a gente de joelhos” se não lhe pagarem imediatamente e por inteiro.
Sem se deixar tentar pela farsa ou pelo melodrama, nem subverter as balizas deste formato, Cédric Khan (que também interpreta um dos papéis principais, o filho Vincent) orquestra as tensões, as dissensões, as cumplicidades, as antipatias, os ressentimentos e os ridículos que se vão manifestar no seio desta família por causa da irrupção de Claire no cenário aparentemente pacífico e harmónico da celebração de grupo.
O realizador evita definir heróis ou vilões de forma grosseira e distribui com mão segura, e conta, peso e medida emocional, os momentos dramáticos e de confronto, e os de descompressão e de humor, reservando o pleno da sua simpatia apenas para os mais novos: a filha de Claire e o namorado, e os dois miúdos de Vincent e da mulher.
Por ter a personagem mais espalhafatosa e de mais e maiores repentes, Emmanuelle Bercot destaca-se naturalmente no afinado elenco “coral” de Festa de Família. Mas está seguida muito de perto por Vincent Macaigne no papel de Romain, o filho ganzado e armado em cineasta artístico, que arrasta a nova e pouco dócil namorada argentina para a festa, bem como uma câmara com a qual quer rodar um documentário sobre a sua família, entre citar Ozu, fazer comício contra o cinema comercial e bater com o BMW do irmão depois de ter fumado erva. E como toda esta gente se conhece bem demais para se matarem entre si, no final, depois de muitas lágrimas, choques e berros, lá conseguem soprar as velas do bolo de anos. Quase todos, isto é, porque não há famílias perfeitas.