Estamos no mais escuro e no mais frio do Inverno na cidade russa de Yakaterinburgo, e Petrov (Semyon Serzin), um autor de banda desenhada divorciado de uma bibliotecária e com um filho pequeno, está com uma descomunal gripe em cima e cheio de febre, e no interior de um autocarro onde os passageiros não param de embirrar com a revisora, e uns com os outros. A certa altura, um deles, um idoso, começa com uma diatribe contra os ricos, o governo, os políticos e os judeus, que conclui com a frase: “Deviam era ser todos mortos!”. Segundos depois, vemos um grupo de homens armados a fuzilar na rua, mesmo ali ao lado o que parecem ser as pessoas referidas no arrazoado do idoso do autocarro.
Petrov é o protagonista de A Febre de Petrov, de Kirill Serebrennikov (autor do excelente Verão), e esta sequência dá o mote para o resto do filme, adaptado de um romance do escritor Alexei Salnikov. Nele, o realizador passa o tempo, quase sempre de um plano para o outro e de forma cerradamente arbitrária, a obliterar a fronteira entre realidade e fantasia, entre o nosso mundo e o dos sonhos, o presente e o passado, o tempo e o espaço, entre níveis de realidade e entre os pontos de vista das várias personagens. Só um exemplo: numa das sequências, o protagonista (e o espectador ao mesmo tempo que ele) descobre que estava a ler o manuscrito de um livro que o seu amigo Sergei tenta, debalde, publicar, e que se incluiu na história.
Confuso? Sim, por vezes, A Febre de Petrov pode sê-lo, tal a forma como o realizador anda de personagem em personagem, de situação em situação, de uma dimensão para outra, do real para o imaginado, para o sonho, a alucinação ou para o desejado, num verdadeiro aluvião narrativo e visual. Há momentos em Kirill Serebrennikov não consegue impedir o filme de cair no caos ou de se tornar ininteligível. Mas logo a seguir tudo se recompõe e estamos de novo no carro funerário onde Petrov e os seus amigos se embebedaram, ou com a mulher dele na sombria e encardida biblioteca municipal em que trabalha e onde tem que separar poetas que começaram à pancada durante a reunião do seu clube literário; ou ainda a ver um luminoso OVNI furar de súbito a escuridão de breu da noite de Yakaterinburgo, por entre a neve que não cessa de cair.
Comédia muito negra e ainda mais desesperada, sátira existencial e absurda à vida na Rússia de hoje, fantasmagoria de ambiente hiper-realista, alucinação ciente de si mesma, sonho febril que é sonhado de olhos abertos, A Febre de Petrov está longe de ser um filme confortável de ver e fácil de digerir, muito menos de enfiar numa categoria. Se Serebrennikov não tinha quaisquer ilusões sobre a natureza do extinto regime comunista soviético (ver o citado Verão, de 2018), também não está nada optimista com aquele que tomou o seu lugar (aliás, o realizador tem tido sérios problemas com as autoridades do seu país), como podemos constatar em The Student (2016) e muito em especial neste espesso e taciturno, atormentado e alucinatório A Febre de Petrov.
Convinha agora que alguém se lembrasse de estrear Limonov: The Ballad, o novo filme de Kirill Serebrennikov, sobre o recentemente desaparecido e controverso escritor, poeta, dissidente, activista e político russo Eduard Limonov, ao qual o escritor francês Emmanuel Carrère dedicou uma biografia romanceada, Limonov, que o polaco Pawel Pawlikowski esteve para adaptar ao cinema em 2017. E que, de preferência, não se estreasse em Portugal com três anos de atraso, como sucedeu com A Febre de Petrov.