Fotograma de la película Yo, Daniel Blake
Foto: Cortesía Time Out Londres

Crítica

Eu, Daniel Blake

4/5 estrelas
O ultimo filme de Ken Loach, vencedor do festival de Cannes, é uma peça de realismo social ao mesmo tempo previsível e comovente
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A Time Out diz

Ken Loach, 80 anos, tinha anunciado o fim da carreira em 2014, depois de fazer Jimmy Hall, a biografia do líder comunista irlandês James Gralton. Mas alguma coisa no ar do tempo – segundo ele, o excesso de políticos conservadores no poder – fê-lo mudar de ideias e o resultado é Eu, Daniel Blake, filme que em Maio lhe valeu a segunda Palma de Ouro em Cannes (a primeira foi com The Wind That Shakes the Barley, em 2006) e que é, sem surpresa, uma peça de realismo social ao mesmo tempo previsível e comovente.

Filmado e passado em Newcastle, Eu, Daniel Blake é a história de um carpinteiro viúvo (o Blake do título, interpretado pelo comediante Dave Johns) que nunca teve um computador e vive pelos seus princípios morais de senso comum até que um ataque de coração o deixa incapaz de trabalhar. Nessa altura, fica a saber que os apoios sociais com que contava, a começar por aquilo que em Portugal seria o subsídio de doença, não vão acontecer. Isto é e mais uma vez, um exemplo de que há coisas que são tão inesperadas que ninguém está preparado para elas.

 Em vez de lhe dar uma solução, a burocracia anónima do sistema inglês atira Blake para a via sacra do subsídio de desemprego e da ridícula actividade administrativa – feita de papeladas, formulários online e esperas ao telefone - a que ele tem de se submeter não para aumentar as probabilidades de voltar a trabalhar mas simplesmente para desbloquear o pagamento do mês seguinte.

A partir daí o filme sobe de tom e acompanha a luta de Blake, mais do que pela sua sobrevivência, pela sobrevivência do seu amor-próprio. Sentido de justiça e dignidade são outros termos possíveis para descrever a motivação de Blake na sua campanha de um homem só contra um certo mundo moderno, cego, cruel, sem rosto e estupidamente complexo para homens como ele, que se diz “do lápis por defeito”.

De caminho, Blake assume também a causa de Kattie (Hayley Squires), mãe solteira de dois filhos que Blake encontrou a ser maltratada num centro de emprego, onde o funcionário de serviço rejeitou com prazer maldoso e certo e seguro da sua impunidade o apoio a que ela tinha direito. Blake passa então a ajudar Kattie em casa e a revolta contra o sistema torna-se um jogo de equipa. Aquela ideia de que não fazer nada é muito difícil, porque nunca sabemos quando acaba, é o motor dos dois na empreitada.

Se quiséssemos resumir Eu. Daniel Blake num lugar-comum, diríamos que é a história de como um homem pode fazer a diferença, se a convicção e o empenho forem suficientes. Balzac chamava às instituições burocráticas um mecanismo gigante controlado por pigmeus, e o filme de Loach é também um arraso feroz desta criatura sinistra pela voz de Blake.

Se a razão por que as preocupações matam mais pessoas que do que o trabalho é que as pessoas preocupam-se mais do que trabalham, Eu, Daniel Blake é a resposta firme, de acção concreta, a essa regra.

Uma das curiosidades da filmografia de Loach é que sendo ele um “progressista” o seu estilo é feito, desde sempre, de tradições dramáticas conservadoras e de gestos políticos emocionais a traço grosso que são, em matéria puramente de cinema, esquemáticos muito mais do que vanguardistas. Eu, Daniel Blake é e não é mais do mesmo.

O argumento de Paul Laverty, que escreve os filmes de Loach há 20 anos, quando tomou o lugar de Jim Allen, dramaturgo socialista e antigo mineiro, tem um lado que neste momento já está automatizado e ele faz de olhos fechados, que é o dos comícios contra o sistema. Para Laverty e por extensão Loach, não só a máquina administrativa do Estado capitalista é um instrumento da humilhação dos mais fracos como todos e cada um dos trabalhadores dessa máquina tem interesse e, mais, gosto pessoal em lixar o mexilhão.

Os personagens são com frequência usados como porta-vozes deste activismo social monocórdico e essa é a parte mais chata e pobre de Eu, Daniel Blake, como é historicamente dos filmes de Loach.

Por outro lado e se conseguirmos ignorar a cassette habitual, há aqui uma dimensão paralela que faz deste um grande filme. Visualmente, Eu, Daniel Blake é discreto e elegante, a fotografia de Robbie Ryan uma espécie de álbum de memórias do presente; de imagens, mesmo dos exteriores, intimistas e afectuosas, mas com qualquer coisa de crepuscular e que já é também antigamente.

Johns, no papel de Blake, dá-lhe uma energia espontânea que é outra vez um dos encantos do trabalho de Loach com os actores. Loach põe-se aos pés dos personagens e entrega-se ao serviço deles sem reservas, ao mesmo tempo que escolhe actores capazes de no fundo se interpretarem a si próprios num contexto de ficção – e este é mesmo o super-poder de Loach.

Ajuda, claro, que Johns não tenha experiência por aí além como actor (é um cómico de stand up) – quer dizer que as suas movimentações e as suas falas parecem totalmente orgânicas. Dito isto, o ponto alto de Eu, Daniel Blake não é de Blake e sim de Kattie, quando ela, numa sopa dos pobres, deixa cair as defesas com estrondo e se torna, pelo espaço de uns minutos, numa presença genuinamente contagiante, num momento irretocável de comédia negra, carregada de medo e fúria - no fim só apetece bater palmas e dizer bravo.

Eu, Daniel Blake, em suma, é a própria imagem de Loach – se conseguirmos viver com os defeitos, tem muito para dar.

A estreia de Eu, Daniel Blake traz também, em complemento, Versus: The Life and Times of Ken Loach, um documentário realizado por Louise Osmond já em 2016 e que é uma introdução simpática mas justa à carreira de Loach.

Detalhes da estreia

  • Classificação:15
  • Data de estreia:sexta-feira 21 outubro 2016
  • Duração:100 minutos

Elenco e equipa

  • Realização:Ken Loach
  • Elenco:
    • Dave Johns
    • Hayley Squires
    • Micky McGregor
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