[title]
Antonioni e Patricia Highsmith são dois dos nomes que podem perfeitamente vir à baila a propósito de Em Chamas, do sul-coreano Lee Chang-dong (Oasis, Poesia), tão intensa é a ambiguidade que assenta arraiais no filme de princípio ao fim, tão cerradamente inquietante é o tom da história, tão estranhas são as relações entre as personagens, tão incerto e esbatido é quase tudo o que nele se passa.
Mas Chang-dong não precisa destas muletas de referências para impor este filme adaptado de um conto de Haruki Murakami, por sua vez inspirado por um outro de William Faulkner. E que apesar de ter ressonâncias e significados que os sul-coreanos detectarão e perceberão melhor do que quaisquer outras pessoas, funciona também perfeitamente, pelas suas qualidades narrativas e visuais, para um público mais vasto.
O jovem Jong-su (Yoo Ah-in) quer ser escritor mas tem que ir para a terra natal, cuidardapequenapropriedadedopai,que estádetidoeaaguardarjulgamentoemSeul por ter agredido um funcionário municipal. A sua amiga de infância e vaga namorada Shin Hae-mi (Jeon Jong-seo), tão bonita como endividada e cabeça de vento, regressa de férias de África na companhia de um novo amigo, Ben (Steven Yeun). Bem parecido, rico, cosmopolita, Ben guia um Porsche, mora no bairro fino de Gangnam (o da canção de Psy) e dá respostas esquivas quando lhe perguntam o que faz e de onde lhe vem o dinheiro (a certa altura, Jong-su chama-lhe “Grande Gatsby”).
Shin Hae-mi começa a aparecer com Ben vezes demais para o gosto de Jong-su, e aquele, um dia que o vai visitar à terra, revela-lhe que tem um insólito passatempo: deitar fogo a estufas abandonadas. Acrescentando que tem em mira uma estufa muito próxima de onde o rapaz vive.
Ben é um sujeito peculiar. Tanto pode ser apenas um playboy estouvado, cool e elegantemente enfadado com o seu próximo e com o mundo, como sob essa capa pode estar um sociopata amoral e perigoso. Depois de Ben lhe confessar o seu passatempo, Jong-su passa a visitar todas as estufas abandonadas da sua região para ver se estão ou não queimadas. E quando Shin Hae-mi desaparece, subitamente e sem deixar o menor rasto, passa também a seguir Ben, por achar que ele poderá ter algo a ver com o sumiço da jovem.
Ao mesmo tempo, Jong-su começa a ter dúvidas sobre acontecimentos da sua infância relacionados com a desaparecida. Que por seu lado mentiu a Ben sobre não ter família e estar só no mundo; e poderá também ter mentido ao próprio Jong-su sobre coisas que se passaram com ambos quando eram crianças, vizinhos e colegas de escola, e das quais o rapaz recolhe informações contraditórias junto de quem lhe poderia explicar o que realmente aconteceu.
Enigmático, arrepiante e desconcertante, a espaços levemente afectado (mas nunca chega a ser grave), Em Chamas é como um daqueles bolos com várias camadas e muitas cores que se equilibra perfeitamente e tem um sabor uniforme, porque o pasteleiro é exímio no seu ofício.
Através do triângulo formado pelos protagonistas, Chang-dong toca em vários problemas da Coreia do Sul: o ressentimento social, o aumento do desemprego entre os jovens, o desatino, consciente ou não, de uma nova geração que não consegue, não sabe ou não quer encontrar o seu lugar na ultracompetitiva e supertecnológica sociedade coreana, ou a dilacerante divisão entre as duas Coreias (o herói e a desaparecida são de uma terra junto à fronteira, e ouve-se a propaganda vinda do lado comunista através de potentes altifalantes).
Mas Em Chamas é também um filme sobre a raiva que Jong-su poderá ter herdado do pai, que levou este à cadeia e o levará a fazer o que faz por fim; e ainda um thriller movediço, difuso e sinuoso, com tempero de mal-estar existencial e de disfunções emocionais. Certo, certo é que é um daqueles raros filmes em que o realizador mantém tudo em meias tintas, a boiar em dúvidas e interrogações, nada é bem explicadinho e deixado em pratos limpos no final, e cada qual é deixado com as suas suposições, sem que isso prejudique quer a nossa fruição, quer as interpretações que possamos fazer da história.
E que bem filma Lee Chang-dong. Basta reparar na sequência em que, ao fim do dia, no alpendre da casa do pai de Jong-su, o trio se põe a fumar erva e Shin Hae-mi tira a camisola e dança seminua, ao som de Miles Davis, enquanto a luz vai desaparecendo. É um grande momento de cinema puro que levamos connosco, tal como o final, magnificamente desvairado, quando há, enfim, chamas. E muito sangue.
Por Eurico de Barros