Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você
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Crítica

Elis & Tom: Só Tinha de Ser com Você

4/5 estrelas

Um documentário com imagens inéditas desvenda a gravação, em 1974, em Los Angeles, do álbum ‘Elis & Tom’, de Elis Regina e Tom Jobim.

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A Time Out diz

Quando assinou, em 1972, “Águas de Março”, uma das mais extraordinárias canções da história da música brasileira, Tom Jobim estava na mó de baixo. Tinha tido problemas com o regime militar brasileiro, estava a beber demais e o médico havia-lhe dito que se não parasse, ou pelo menos abrandasse, ia morrer de cirrose, e queixava-se de que já ninguém ouvia os seus discos e que a Bossa Nova tinha sido ultrapassada pela música da nova geração, e sobretudo pelas canções mais politicamente orientadas desta. Jobim dizia, em jeito de brincadeira, que ia acabar com 80 anos a cantar “Garota de Ipanema” num circo no interior do Brasil, e a ser vaiado. 

O documentário Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, de Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay (que ficaria mais tarde associado a Portugal pela catastrófica co-produção luso-brasileira O Judeu), abre e fecha precisamente com Jobim e Elis Regina interpretando “Águas de Março” em Los Angeles, em 1974, durante a gravação do seu histórico disco Elis & Tom, produzido por Aloísio de Oliveira. E ninguém diria, pela sintonia em que estão e pela alegria que demonstram ao cantá-la, que estes dois sobredotados da música com feitios muito diferentes começaram por não se entender no estúdio, e que o álbum quase que esteve para não existir.

Elis, então com 29 anos e já a maior cantora do Brasil, e o maestro e “monstro sagrado” Tom Jobim, com 47, encontraram-se naquele estúdio da MGM em Los Angeles (Jobim vivia então nos EUA) porque a editora dela, a Phonogram, costumava dar um prémio quando um artista seu fazia dez anos de “casa”, e no caso de Elis, o prémio era este disco. Roberto de Oliveira, então empresário de Elis, bem como esta, viam-no também como uma maneira de “limpar a sua imagem”. Dois anos antes, ela tinha cantado nas Olimpíadas do Exército, o que lhe havia valido violentas críticas da esquerda artístico-cultural, que acusou Elis de associação ao regime militar que governava o país com mão muito dura. 

A ideia – ou “a ousadia” – de chamar Tom Jobim para ser o artista convidado do disco de Elis foi do próprio Oliveira. “Eu sabia que 1 mais 1 daria 20”, conta no documentário, cujas imagens foram rodadas quase por acaso, usando a sua máquina de filmar de 45 mm (a ideia inicial era apenas captar o som ambiente), com a colaboração de Jom Tob Azulay, que então estudava cinema na UCLA. Inéditas durante quase meio século, porque Roberto de Oliveira julgava que as pessoas não as iam entender se tivessem sido mostradas na altura, essas imagens surgem agora, finalmente, em Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, restauradas digitalmente, tendo o som sido remasterizado com recurso à Inteligência Artificial, e acompanhadas por testemunhos e comentários de Oliveira, dos músicos que participaram nas gravações de Elis & Tom, do jornalista e crítico Nelson Motta (que escreveu o documentário, com Roberto de Oliveira), de Jon Pareles, crítico de música do The New York Times, e de filhos dos dois artistas, entre outros.

Rodadas entre Fevereiro e Março de 1974, elas mostram Elis e Jobim a falarem sobre os compositores e cantores que admiram, a conviverem afavelmente e a trabalharem nas canções do álbum. Mas também os momentos de tensão e as situações de conflito que surgiram entre eles, em boa parte porque o exigente e perfeccionista compositor da imortal “Garota de Ipanema” não conseguiu confinar-se ao seu papel de ilustre participante de um disco de Elis Regina e da sua banda. O carioca Jobim (que num momento de particular irritação terá então dito de Elis – coisa que ele aparece a desmentir num programa de televisão dos anos 90 – que “ainda cheirava a churrasco”, numa dupla referência à sua inexperiência e à sua origem rural, do Rio Grande do Sul) embirrou particularmente com os arranjos e o estilo de tocar piano de César Camargo Mariano, marido da cantora, pianista da banda e responsável pelos arranjos do disco, e jovem de 27 anos.

Em Elis & Tom, Só Tinha de Ser com Você, vemos Tom Jobim a fazer troça de Mariano por ele usar a expressão “piano de pau” para se referir ao piano acústico tradicional, e dizer que vai usar – sacrilégio! – o piano eléctrico em vez deste (“Era uma verdadeira facada no meu peito”, recorda aquele no filme). Como escreveu o crítico brasileiro Cézar Xavier, “Tom devia imaginar que ia gravar mais um de seus discos, com seus arranjos de ‘piano de pau’ e orquestra, preenchendo sucessos conhecidos na voz de mais uma cantora”. E a dado momento Elizabeth Jobim, uma das filhas do maestro, sintetiza bem a oposição entre a personalidade musical minimalista e contida do pai, que “usava mais a borracha do que o lápis”, e a vocalidade exuberante e o estilo expansivo em palco de Elis e a “modernidade” do som da sua muito cúmplice banda (no disco participou ainda um sexteto de cordas regido por Bill Hitchcock e um trio de flautas).

A coisa esteve por um fio. Elis Regina chegou mesmo a atirar a toalha para o ringue e a fazer as malas para regressar ao Brasil, e não fosse Roberto Menescal, executivo e director artístico da Phonogram, ter-se metido à pressa num avião e voado para Los Angeles para a demover, e Elis & Tom nunca teria visto a luz do dia. Mas os mal-entendidos e as fricções acabaram por ser ultrapassados, e onde havia discórdia, tensão e opressão, passou a haver harmonia, concordância e leveza. E o encontro improvável entre as genialidades “difíceis” de Elis Regina e Tom Jobim num estúdio da Cidade dos Anjos, redundou num álbum de antologia, uma obra-prima imprescindível da música popular brasileira, “uma explosão de felicidade e graça”, nas palavras do citado Cézar Xavier. Como nota João Marcello Bôscoli, o filho mais velho da cantora, “Foi um monte de raio caindo no mesmo lugar.” 

Quando, instado por César Camargo Mariano, Tom Jobim ouviu o resultado final, ainda em fita, ele chorou. E no dia seguinte, ao telefone, disse-lhe, recorrendo a uma curiosa e original metáfora: “Vocês [Elis e César] tomam banho de chuveiro, com água fria e corrente, eu tomo de banheira, com água morna, que se vai ajustando à temperatura do meu corpo. Fiquei um pouco assustado quando recebi tanta informação nova, trazida pelos jovens”. Ao vermos Elis Regina e Tom Jobim interpretar “Águas de Março” há meio século, naquele estúdio da Califórnia onde se bebia muito, todos fumavam como chaminés e ninguém ligava à atenta e indiscreta máquinazinha de filmar de Roberto de Oliveira, ninguém diria que antes de tanto entendimento, alegria e descontração, houve discórdia, cizânia e constrangimento. Teria sido um gravíssimo pecado, um monumental crime de lesa-música, se Elis & Tom nunca tivesse existido.

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