Drive My Car
Photograph: Modern Films Entertainment Ltd

Crítica

Drive my car

5/5 estrelas
Apanhámos boleia de ‘Drive My Car’, o mais recente filme do japonês Ryûsuke Hamaguchi, e acabamos a viagem em estado de graça três horas depois.
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A Time Out diz

Passam-se cerca de 40 minutos até os créditos de Drive My Car, de Ryûsuke Hamaguchi, aparecerem no ecrã, o que seria estranho se o filme tivesse a canónica hora e meia. Mas como dura três horas, este aparecimento invulgarmente tardio das informações sobre quem fez o quê no filme faz sentido, até porque esses 40 minutos funcionam como o equivalente cinematográfico da abertura de uma sinfonia, bem como um separador temporal para a acção. Neles, somos apresentados a Yusuke (Hidetoshi Nishijima), um actor e encenador, e à sua mulher, Oto (Reika Kirishima), mais nova que ele e argumentista de televisão. Um dia, Yusuke, que ia viajar em trabalho, vê o seu voo ser cancelado por causa do mau tempo, volta para casa sem avisar, e surpreende a mulher com outro homem, um actor mais jovem do que ele. Em vez de fazer um escândalo, sai discretamente. E quando mais tarde se prepara para ter uma conversa com a mulher, ela morre de súbito com um AVC, deixando-o devastado.

Dois anos mais tarde, reencontramos Yusuke ao volante do seu carro, um velho Saab Turbo 900 vermelho-vivo, rumo a Hiroshima, onde vai encenar uma produção multilingue de O Tio Vânia, de Tchékov. Lá chegado, a direcção do festival de teatro diz-lhe que, por razões contratuais e de segurança, ele não pode guiar o carro, e designam-lhe uma condutora, a jovem Misaki (Tôko Miura). Yusuke fica aborrecidíssimo porque costuma aproveitar as horas de condução para ensaiar as peças, ouvindo-as em cassetes que a mulher gravava, e não acredita que Misaki, uma rapariga tão nova, seja capaz de conduzir um carro como o seu. Mas ela mostra-lhe que sim, e além disso, é fumadora como ele, duas coisas que acabam por agradar ao actor e encenador.

No teatro, Yusuke, que está a trabalhar com um elenco vindo de vários países asiáticos e com uma actriz coreana muda que se expressa por linguagem gestual, decide de repente abdicar de interpretar o papel do título da peça de Tchékov, entregando-o a um jovem mas já famoso actor, Takatsuki (Masaki Okada), que tem tido dificuldade em encontrar trabalho por ter estado envolvido num caso de polícia em que foi acusado de relações sexuais com uma menor. Takatsuki é também o homem com quem Yusuke surpreendeu a falecida mulher, pelo que é lícito pensarmos que ele se está a vingar dele entregando-lhe um papel de grande responsabilidade numa altura difícil da sua vida e da sua carreira. Entretanto, a cada viagem de ida e volta, Yusuke e Masaki vão criando confiança e uma cumplicidade que será fundamental para ambos em termos pessoais, e para a resolução da história.

Revelar mais coisas sobre o enredo de Drive My Car é estragar o prazer do espectador na sua descoberta das várias camadas narrativas e emotivas, e das muitas subtilezas deste filme em que Hamaguchi continua a revelar-se como um grande cineasta da palavra, talvez o maior dos nossos tempos, um mestre do diálogo e um exímio manipulador da conversa como revelador privilegiado da mais secreta intimidade das suas personagens. Isto sem nunca permitir que os seus filmes se atolem em verbosidade redundante ou excessiva, e conseguindo manter sempre um estilo visual caracterizado pela clareza de exposição, por uma fluidez simultaneamente controlada e eloquente e por um sentido consumado do tempo. Se há realizador que não se apressa a contar o que tem para contar, é Ryûsuke Hamaguchi.

Baseado num conto de Haruki Murakami e escrito por Hamaguchi e Takamasa Oe, Drive My Car é um filme em que o realizador de Happy Hour: Hora Feliz e Asako I & 2 labuta sobre os paralelismos, as associações e as ligações íntimas que se podem estabelecer entre a arte e a vida (sobretudo a dos artistas), servindo-se habilmente de O Tio Vânia como correlativo visível e caixa de ressonância para a condição interior de Yusuke. E que está intrinsecamente dependente da consabida reticência emocional dos japoneses para conseguir não só o seu pleno efeito dramático, como também a detonação confessional e as catarses pessoais de Yusuke e Masaki. Consumadas com as palavras e a expressividade estritamente necessárias em vez de espalhafato melodramático, e com Hidetoshi Nishijima e Tôko Miura a coroarem duas interpretações brilhantes de parcimónia, interiorização e subentendido.

Drive My Car está nomeado para os Óscares de Melhor Filme, Realizador, Argumento e Filme Internacional. E Cannes ficou mesmo muito mal na fotografia ao dar-lhe apenas o Prémio de Melhor Argumento e não a Palma de Ouro, entregue ao abominável e irrelevante Titane.

Elenco e equipa

  • Realização:Ryusuke Hamaguchi
  • Argumento:Ryusuke Hamaguchi, Takamasa Oe
  • Elenco:
    • Hidetoshi Nishijima
    • Tôko Miura
    • Reika Kirishima
    • Masaki Okada
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