De que serve ter uma majestosa casa senhorial de família no campo, cheia de história e de criados, se o telhado está crivado de buracos e é preciso pôr baldes e panelas no sótão quando chove, e não há dinheiro para o conserto? Este problema põe-se na casa dos aristocráticos Crawley em Downton Abbey: Uma Nova Era, de Simon Curtis, escrito como sempre por Julian Fellowes, criador da série original, que já se transformou numa marca inglesa, num fenómeno cultural e numa renda séria (nos EUA há festas temáticas Downton Abbey, e a caixa de DVD com a série integral é a mais vendida de sempre na Amazon).
O telhado que mete água é responsável pelo segundo enredo principal deste segundo filme de Downton Abbey, que só por si justifica ir vê-lo. Para o poder arranjar, Lord Grantham (Hugh Bonneville) aceita, com muita relutância, a oferta de uma produtora que quer usar a casa como cenário de um filme mudo passado no século XIX. E eis Downton Abbey “ocupada” por projectores, fios, câmaras de filmar e extras em trajes de época, e a criadagem empolgadíssima com a presença de duas grandes vedetas, o simpático galã Guy Dexter (Dominic West) e a bela mas ríspida e vulgar Myrna Dalgleish (Laura Haddock).
As várias peripécias em redor da presença da equipa de filmagens na casa dos Crawley (que incluem uma situação “emprestada” ao clássico Serenata à Chuva, de Stanley Donen e Gene Kelly, e a descoberta de vocações insuspeitadas para a Sétima Arte entre residentes, empregados e visitantes) vão dar pano para mangas a muitas das personagens da família e dos criados. Vão também recriar, como só os ingleses (ainda) conseguem fazer, com todos os efes e erres, uma altura do início do século XX em que ainda havia pessoas que se referiam ao cinema como “kinema” ou “cronofografia”, e a transição do mudo para o sonoro estava a causar problemas técnicos e pessoais a muita gente. E passam para segundo plano o outro enredo principal do filme, que leva para França parte da família e alguns dos criados, para saberem porque é que um rico aristocrata, o marquês de Montmirail legou a Lady Violet (Maggie Smith, sempre em grande forma e muita munição de comentários e réplicas certeiras) uma luxuosa moradia de férias na Côte d’Azur.
Ou não fosse feito ao mais alto nível profissional, da escolha do mais discreto adereço à escrita do argumento, passando pela escolha do elenco e pela descrição – embora idílica e idealizada – de um estilo de vida, de um tipo de relação social e entre classes, de um quadro mental e de um conjunto de valores partilhados e interacções humanas, vigentes na Inglaterra de há um século e hoje desaparecidos (daí que uma das principais componentes da série como dos filmes de Downton Abbey seja o seu fortíssimo poder misto de evocativo e nostálgico), Downton Abbey: Uma Nova Era funciona indesmentivelmente como entretenimento de topo de gama e máquina de recuar no tempo cinematográfica. Digam o que disserem os mais cínicos e trocistas.
Fazendo jus à frase “nova era” do título, há no filme um casamento, um baptizado e um funeral, e algumas das personagens vão viver novas etapas das suas vidas, enquanto uma delas regressa a funções antigas. E dá-se a transmissão de uma geração para outra da gestão da casa e dos destinos dos Crawley, na esperança de que a tradição continue a ser o que sempre foi. Pelo menos, e graças ao “kinema”, o telhado de Downton Abbey já não mete água.