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Para aqueles que estão fartos de ver apocalipses nucleares, energéticos ou de zombies no cinema, Crónicas de Vesper é uma distopia refrescante. Produção franco-belgo-lituana realizada por Bruno Samper e Kristina Buozyte, o filme passa-se num mundo sombrio, lamacento e falho de meios e de comida, após uma catástrofe global causada pelo colapso do ecossistema do planeta, na sequência de experiências biogenéticas que correram muito mal. As tentativas de prevenir um desastre ecológico através da tecnologia genética, acabaram por ser a causa do mesmo.
A humanidade vive ou em cidadelas fechadas sobre si mesmas e que não partilham recursos, tendo encriptado geneticamente as sementes de que dispõem; ou espalhada pelos campos, no meio de uma natureza abundantemente mutante, onde pululam as mais estranhas plantas, fungos, líquenes e insectos, e que tanto pode ser fascinante como letal. A heroína do filme é a Vesper do título (Raffiella Chapman), uma sobredotada rapariga de 13 anos que se tornou perita em biohacking e vive com o pai numa casa em muito mau estado, perto de um laboratório arruinado onde se abastece. O pai dela está doente e acamado, mas a sua mente e a sua voz foram transportados para um drone biológico que acompanha Vesper onde quer que ela vá.
Perto deles mora o tio de Vesper, Jonas (Eddie Marsan), que não é flor que se cheire apesar das suas falinhas mansas, e que acolhe crianças órfãs ou perdidas, cujo sangue troca por sementes com as cidadelas. Um dia, uma nave espacial vinda de uma das cidadelas, e que estava a ser perseguida por outros engenhos, despenha-se na floresta, e Vesper recolhe às escondidas de Jonas uma das suas tripulantes, uma rapariga que viajava com o pai e cuja presença vai alterar dramaticamente o já de si delicado equilíbrio que se vive na região. Ao mesmo tempo, Vesper está a tentar descodificar geneticamente sementes que roubou ao tio.
O casal de realizadores de Crónicas de Vesper, todo rodado na Lituânia, assinou um filme de ficção científica low fi, em pequena escala, que troca a espectacularidade pela construção de um mundo futuro que tem coerência interna e verosimilhança tecnológico-científica, recorrendo a um mínimo de efeitos especiais digitais e apostando na pormenorização dos ambientes tristonhos e decadentes, e numa quantidade de boas ideias visuais: as várias e bizarras mutações sofridas pela natureza, o predomínio da tecnologia biogenética, a arquitectura das cidadelas (vistas só à distância, e que nem por acaso têm a forma de cogumelos), os enigmáticos “peregrinos” que andam a recolher todo o tipo de lixo sem se saber porquê, ou mesmo o smiley que Vesper colou numa das faces do seu drone, para lhe dar um toquezinho “humano”. A mensagem ecológica da história é discreta e não nos é enfiada pela boca abaixo, e o final é elipticamente esperançoso em vez de explicitamente “feliz”.
Um filme com as características de Crónicas de Vesper arrisca-se a passar despercebido no meio de estreias mais vistosas, e merece atenção – e não só dos apreciadores de ficção científica fartos de futuros distópicos convencionais e prontos-a-servir na sua estereotipação aparatosa.