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Em 26 de Janeiro de 1977, um grupo de escritores, artistas e intelectuais franceses, entre os quais Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Roland Barthes, Louis Aragon, Jack Lang, Patrice Chéreau e Gilles Deleuze, publicaram no Le Monde um artigo de opinião colectivo a defender a pedofilia, tendo como pretexto um pedido de libertação de três homens que estavam presos há alguns anos, por terem abusado sexualmente de menores de 15 anos. Em Maio do mesmo ano, e também no Le Monde, as mesmas pessoas, a que se juntaram mais algumas, escreveram outro texto, desta vez a pedir a descriminalização das relações sexuais entre adultos e menores de 15 anos. Num debate televisivo em 1978, alguns destes intelectuais e um jurista defenderam a ideia de que os pedófilos envolvidos numa relação sexual com menores, desde que consentida por estes, não deviam ser presos.
Foi neste contexto social e mental que se desenrolou, em meados dos anos 80, a relação íntima entre o escritor e pedófilo declarado Gabriel Matzneff, então com 49 anos, e a jovem Vanessa Springora, de 14 anos. Matzneff documentou-a nos seus diários (onde descrevia também as suas aventuras sexuais com crianças nas Filipinas) e fez dela matéria de algumas ficções, sem nunca pedir a autorização da amante. Dois anos depois, Springora acabaria por romper com Matzneff, que a substituiria por outra conquista menor de idade, tal como ela havia antes sucedido a outra.
Em 2020, Vanessa Springora, já casada e mãe, publicou o livro Consentimento, uma memória catártica da sua relação com Gabriel Matzneff, recordando como a sua precocidade intelectual e o seu interesse por livros contribuíram para a sua sedução pelo escritor, fascinada como estava por ele e lisonjeada por ser o alvo das atenções e do desejo de um homem tão brilhante, conhecido e elogiado nos círculos literários e intelectuais – e inclusivamente, pelo Presidente François Mitterrand, seu leitor e admirador –, que aliás ela frequentou na sua companhia. Editado em plena agitação #MeToo, Consentimento levou a que Matzneff fosse investigado por violação de menor de 15 anos, que vários dos seus livros fossem retirados do mercado e o seu estatuto literário e editorial seriamente afectados. (O escritor está agora a ser alvo de um segundo inquérito por alegada violação de uma menor há quatro décadas.)
Realizado por Vanessa Filho e adaptado muito fielmente do livro, Consentimento contou com a colaboração da autora, e recria os acontecimentos ali narrados, sem esquecer ou subalternizar o contexto familiar e social em que se deram. Springora era filha de pais divorciados e a mãe sempre foi muito condescendente com a relação da filha com Gabriel Matzneff (que até passou a ser visita de casa); o círculo de amigos e conhecidos do escritor nunca estranhou, criticou ou se opôs (pelo contrário) às suas conquistas sentimentais serem quase todas menores de idade; as autoridades nunca agiram contra ele, apesar de ter havido investigações da Brigada de Menores, tal como a sua pedofilia assumida, contada nos livros e passeada nos media (ver o excerto do programa Apostrophes que aparece a certa altura) parece não ter então impressionado e revoltado muita gente.
Consentimento não se quer aproveitar de forma oportunista e hipócrita da “causa das mulheres” em alta no momento, nem capitalizar no sucesso e no impacto do livro de Vanessa Springora, e é sincero nas suas intenções. A realizadora mostra bem como Gabriel Matzneff usou a sua fama, o seu carisma literário, a proeminência intelectual e a experiência sexual para atrair, seduzir, manipular e, finalmente, humilhar uma Vanessa Springora muito impressionável, e vulnerável devido à situação familiar, intelectualmente precoce mas emocional e sexualmente imberbe. Jean-Paul Rouve é muito bom num Matzneff narciso que atrai e controla as vítimas com a sua reputação, o seu talento literário, lisonja e uma retórica amorosa arrebatada; e Kim Higelin é simplesmente notável numa Springora ofuscada, intimidada e apaixonada quase até ao masoquismo.
As duas – e fatais – fraquezas de Consentimento são o excesso demonstrativo e reiterativo, sobretudo do sofrimento de Springora na fase final da relação com Matzneff, e depois dela, acompanhado de uma insistente histeria visual; e sobretudo, o modo como Vanessa Filho encara as sequências de sexo, que pediam para ser lidadas com pinças para evitar a menor suspeita de voyeurismo e de exploração do que se quer denunciar. Só que ao invés da elipse e da sugestão, a realizadora preferiu as meias tintas, ora recorrendo a imagens de espelho ou difusas, e a planos que escondem parcialmente e implicam o que se está a passar, ora mostrando nudez frontal e actos sexuais simulados, um par de vezes quase incomodamente explícitos. As intenções de Consentimento são boas e louváveis à partida; a sua concretização cinematográfica é que deixa a desejar.