Não fosse por outra coisa, Cobweb – A Teia, a nova fita do sul-coreano Kim Jee-woon (autor dos imprescindíveis História de Duas Irmãs e Eu Vi o Diabo), ficaria decerto conhecida para a posteridade como aquela que usou de forma mais insólita uma canção pop francesa clássica, Poupée de Cire, Poupée de Son, que Serge Gainsbourg escreveu para France Gall interpretar, e representar o Luxemburgo no Festival da Eurovisão de 1965. Jee-woon utiliza-a para acompanhar a cena climática de Cobweb – A Teia, quando a rodagem da última sequência do filme dentro do filme, passada no set de um estúdio, sucumbe ao caos, no meio do incêndio que foi ateado nos cenários para a conclusão da história.
Esse filme dentro do filme é apenas um dos elementos deste atarefadíssimo Cobweb – A Teia, em que Kim Jee-woon faz ainda um pastiche perfeito aos filmes comerciais médios que se faziam na Coreia do Sul nos anos 70, altura em que o enredo se passa; um retrato a meio caminho entre o sério e o satírico das condições de produção e dos constrangimentos institucionais dessa mesma cinematografia por essa altura; e uma farsa de características intemporais sobre um tema que o cinema nunca deixa de gostar de tratar: a confusão que se pode viver na rodagem de um filme, por toda uma série de motivos. Cobweb – A Teia é como um bolo por camadas. E tal como às vezes acontece a alguns destes, algumas saem do forno mais bem cozinhadas do que outras.
Na base da história está uma obsessão, a do realizador Kim Ki-yeol (Sang Kang-ho, de Parasitas), um tarefeiro cujo primeiro filme prometia muito mas que nunca mais voltou a fazer nada de jeito e até é humilhado em público pelos críticos de cinema, por conseguir rodar um novo final para a sua mais recente fita. E que será tão audacioso e especial que – pensa ele – lhe dará o reconhecimento que lhe escapa desde essa estreia e que ambiciona há tanto tempo. Só que, para completar o que considera a sua obra-prima, o realizador terá que ultrapassar toda uma série de obstáculos, a começar pela presidente da produtora que não o quer autorizar a filmar as sequências necessárias. E há ainda os problemas com e entre os actores, os técnicos e com a censura, que tem o poder de encerrar uma produção se o argumento não agradar. Sem falar na acusação que lhe é lançada, a de se estar a aproveitar de algo que não é da sua autoria para brilhar.
Entre sequências a cores e a preto e branco (as do filme no filme), momentos oníricos, flashbacks, as múltiplas peripécias que vão acontecendo no estúdio e que Ki-yeol tem que ir tentando resolver, e a enorme balbúrdia que ali se vai instalando, Kim Jee-woon nem sempre consegue manter Cobweb – A Teia devidamente controlado. A fita por vezes torna-se ela própria excessiva, confusa e sobreexcitada na forma como está a contar uma história caracterizada pelo excesso, pela confusão e pela sobreexcitação. E tal como Kim Ki-yeol acaba por ter fins a mais para o seu filme, Kim Jee-woon também tem tempo em demasia no seu. Pelo menos uns bons 20 minutos podiam ter sido “rapados” a Cobweb – A Teia, que não lhes sentíamos a falta.
Mas há ainda várias coisas boas nos bagunçados e gritados 135 minutos do filme. Toda a agitação cómica gerada pelo calvário que Ki-yeol atravessa para concretizar a sua obsessão; a simpatia que Kim Jee-woon sente pela personagem, pela sua determinação em conseguir fazer o filme como quer e impôr a sua visão artística apesar de todas as barreiras e coerções, e mesmo apesar de ela poder ser “pirosa e pretensiosa”, como lhe atira uma das actrizes a certa altura; e o mirabolante filme dentro do filme, um dramalhão de faca e alguidar que acaba em registo de terror delirante e dá sentido ao título do filme “real”. Outra qualidade revelada aqui por Kim Jee-woon: é melhor gozar com a moda “meta” do que levá-la muito a sério.