Clube Zero
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Crítica

Clube Zero

4/5 estrelas
Através de uma história sobre privação de comida em nome da saúde e do planeta, Jessica Hausner assina uma sátira à manipulação e à fanatização.
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A Time Out diz

Tantas filmes e séries sobre comida, gastronomia, restaurantes, o prazer e a arte de comer e sobre chefs, e eis que a cineasta austríaca Jessica Hausner (Lourdes, A Flor da Felicidade) nos traz uma fita sobre a obsessão do jejum extremado em Clube Zero, passado num lugar não referido (e que tanto pode ser a Suíça como a Áustria ou Inglaterra – onde foi rodado), e no que pode ser visto como um futuro muito próximo. Mia Wasikowska interpreta Novak, uma professora de Nutrição que é contratada para dar aulas num exclusivo colégio particular, que Hausner apresenta sob traços ultra-realistas, entre o próximo de nós e o levemente deslocado do nosso mundo.

Novak tem uma tese sobre nutrição a que chama Comer com Consciência, que apresenta como sendo boa para as pessoas e para o planeta. E para a qual atrai cinco dos seus alunos, cada um dos quais tem razões muito diferentes para aderir a ela, desde um rapaz que faz bailado e tem que estar numa forma perfeita, até uma rapariga que não pára de papaguear piedades sobre a necessidade urgente de salvar a Terra dos malefícios da indústria dos alimentos massificados e da catástrofe ecológica. Novak submete os membros do quinteto a uma disciplina de alimentação cada vez mais radical, acabando por postular que na verdade só conseguiremos estar de plena saúde se deixarmos de comer. Aí chegados, Novak proclama os cinco jovens membros do muito exclusivo Clube Zero. Onde comer com consciência acaba por significar jejuar até cair para o lado.

Quer a directora do colégio quer os pais dos cinco alunos reagem de forma cada vez mais preocupada às ideias de Novak, e ao comportamento relutante dos filhos perante a comida que lhes é apresentada em casa. Com a excepção da mãe de um deles (o único bolseiro do grupo, que não nasceu numa família abastada), uma excelente cozinheira que fica muito desagradada quando o filho não toca nas suculentas refeições que ela lhe prepara, e que vai ao colégio fazer queixa de Novak à directora. Mas a única coisa que causa uma comoção entre esta, os outros professores e a Comissão de Pais é o facto de a professora ter ido à ópera com um dos alunos, já que o convívio entre estes e os discentes é proibido. Ninguém age, e chega o dia em que acontece uma coisa muito estranha a Novak e ao seu punhado de jovens seguidores.

Lançando mão de um estilo fleumático rigorosamente controlado do princípio ao fim, e de um humor de cara séria e fundo negro, Jessica Hausner rodou uma sátira à fanatização, à manipulação e à radicalização de pessoas muito influenciáveis, vulneráveis, mal informadas e ingénuas, com uma óbvia e ampla dimensão metafórica (o Clube Zero podia ser um culto religioso, uma seita mística, um círculo político activista ou uma célula terrorista). Em que a Novak de Mia Wasikowska (que interpreta a personagem com a impassibilidade do fanático que está absolutamente convicto da verdade e do bom e inatacável funcionamento das suas ideias – “Para quê procurar validação científica de uma coisa que salta à vista que funciona?”, diz ela a certa altura – e que, à noite reza à Mãe-Natureza) faz o papel de líder, guru ou sacerdotisa iluminada e irredutível nas suas convicções.

Clube Zero tem também uma leitura literal, como uma denúncia da superficialidade, do oportunismo e dos perigos da moda do mindfulness, que pode ter consequências trágicas, opostas àqueles que procura obter. E no caso da obsessão com o comer bem para fazer bem, a nós e ao ambiente, levar à bulimia, à anorexia e eventualmente à morte. E tudo perante o comportamento ausente, passivo ou temeroso de professores e pais, que têm medo de agir e de exercer a sua autoridade sobre os alunos e os filhos, e sobre Novak, até ser tarde demais. O final do filme parece ser aberto, mas a realizadora deixa nas entrelinhas (visuais e da história) que a mentora e os membros do Clube Zero morreram – de fome.

Jessica Hausner nunca tem a mão pesada nem recorre ao traço grosso ou à enunciação explicativa manifesta, recorrendo aos cenários, ao guarda-roupa, ao jogo das cores dominantes no colégio, nas casas dos pais dos alunos e dos uniformes destes, bem como às interpretações com o seu quê de robótico e de atonia emocional, e à banda sonora sinistramente “encantatória” de Markus Binder, para criar e instalar uma atmosfera gradual e insidiosamente desconfortável e inquietante. A realizadora disse numa entrevista que via Clube Zero, para lá de tudo o que o filme mostra e refere, como “um conto de fadas”. Um daqueles sem final feliz, acrescentamos nós.   

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