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Em 1979, quando as Doce foram “inventadas” por Tozé Brito e Cláudio Condé na Polygram, Portugal ainda não tinha televisão a cores mas ainda tinha o Conselho da Revolução, Manoel de Oliveira estreava Amor de Perdição, o primeiro-ministro era uma mulher, Maria de Lourdes Pintasilgo, Manuela Bravo ganhava o Festival da Canção com “Sobe, Sobe, Balão Sobe”, o Correio da Manhã estreava-se nas bancas, os Jogos sem Fronteiras realizavam-se cá pela primeira vez e Eusébio retirava-se do futebol.
Este era o Portugal em que Laura Diogo, Lena Coelho, Fátima Padinha e Teresa Miguel (estas duas últimas vindas dos extintos Gemini de Tozé Brito e Mike Sergeant) se lançavam como a segunda banda feminina portuguesa (a primeira foram as Cocktail, às quais Lena Coelho tinha pertencido), e uma das primeiras na Europa. Um país que, graças ao dinheiro de Bruxelas, haveria de mudar muito na década de 80, que estava ali mesmo a chegar, e que, farto das canções de protesto dos tempos do PREC, e já a mexer muito graças ao disco que se dançava nas discotecas, testemunharia uma revolução na música ligeira e pop/rock.
As Doce contribuíram para ela, com as suas canções muito trauteáveis e dançáveis, e sensualmente sugestivas, as suas coreografias endiabradas, e uma imagem – do grupo, e de cada uma das quatro cantoras – ao mesmo tempo desenvolta, sofisticada e erótica, construída com a colaboração do costureiro José Carlos. E que, juntamente com uma intensa campanha de marketing, as imporiam como uma marca, coisa raríssima na indústria musical portuguesa.
É a história das Doce, entre 1979 e 1982, quando, à terceira vez e finalmente, ganharam o Festival da Canção com “Bem Bom”, que Patrícia Sequeira (a autora de Snu) conta no filme com o nome desta canção, ao mesmo tempo que procura mostrar como era o Portugal em que elas irromperam. Bem Bom é mais feliz no primeiro aspecto do que neste, em que chega a tender para a pontificação estereotipada, na sequência do soez boato que correu em 1981 sobre Laura Diogo e Reinaldo, jogador negro do Benfica. A fita sofre também de uma falta de meios que compromete as sequências musicais, que parecem ter sido rodadas quase sempre no mesmo sítio, sejam as dos Festivais da Canção (não havia imagens de arquivo da RTP disponíveis para usar?), sejam as dos espectáculos e digressões do grupo.
Onde Bem Bom funciona, na caracterização de Laura, Lena, Fátima e Teresa, e na recriação da formação, consolidação e evolução do grupo, das relações entre elas, desde as tensões iniciais até à união posterior, e da colaboração e das fricções com Tozé Brito, Mike Sergeant e Cláudio Condé, deve-o em muito grande parte às quatro actrizes. Municiadas com papéis bem definidos e diálogos desempoeirados, Bárbara Branco (Fátima), Lia Carvalho (Teresa Miguel), Ana Marta Ferreira (Laura Diogo) e Carolina Carvalho (Lena Coelho) metem-se de imediato, bem e com desembaraço, nas personagens, e transmitem-nos com garra, graça e vivacidade os seus diferentes modos de ser, reagir e viver a música e o grupo, os percalços e os sucessos, e o preço cobrado pelas exigências do trabalho e do êxito nas suas vidas privadas.
É pena que Bem Bom refira apenas de raspão que as Doce foram na altura atacadas pelas feministas portuguesas (uma delas chegou a dizer que estavam “abaixo das mulheres do Cais do Sodré” – ou seja, abaixo de prostitutas – após terem aparecido como odaliscas a cantar “Ali Babá” no Festival da Canção de 1981) e escarnecidas por alguns críticos e por uma certa intelectualidade de esquerda, que insistia que os ouvidos dos portugueses deviam sofrer uma dieta permanente de música revolucionária e suas adjacências (aliás, a certa altura do filme ouve-se num café, em fundo, a insuportável gaivota que “voava, voava”, de “Somos Livres”, na voz de Ermelinda Duarte).
E convém recordar que, ao contrário do que a secretária “patinho feio” da editora sugere no discurso em que apela às Doce para não acabarem e se lhes refere como uma espécie de “guarda avançada” da emancipação feminina entre nós, nem todas as mulheres portuguesas eram como ela, nem precisaram das Doce para se afirmarem individual e socialmente. Mas que elas ajudaram, pelas canções de colagem instantânea no ouvido e convidativas à dança, pela presença inovadora e pela feminilidade estuante e provocante, a fazer da década de 80 em Portugal a mais musicalmente variada, animada e audaciosa do pós-25 de Abril, lá isso é inegável.