[title]
Nascido na Irlanda, pobre e sem futuro evidente, Barry Lyndon é um artista do golpe impassível, dotado ao mesmo tempo de rara habilidade para subir em hierarquias – as de dois exércitos e da aristocracia britânica do século XVIII – e da correspondente falta de carácter que lhe permite aproveitar ao máximo os seus talentos de oportunista.
O segredo de Barry está na impassibilidade. Como ele não parece ter emoções ou desejos por coisa alguma, as coisas acontecem-lhe com naturalidade, como se o mundo que o rodeia estivesse sempre a tentar impressioná-lo, mas sem sucesso.
Obrigado a fugir de casa depois de um romance adolescente de risco e de um duelo, Barry vê-se no meio das tropas inglesas por acidente, vai combater para a Europa, torna-se desertor de dois exércitos, junta-se a outros com as mesmas inclinações em matéria de sobrevivência pessoal e busca de prosperidade, casa-se com uma mulher rica e bela – e depois dá cabo de tudo por preguiça e incapacidade temperamental diante das circunstâncias, ficando sem a fortuna, a mulher e uma perna como quem perde as chaves ou a carteira.
As Memórias de Barry Lyndon, escrito por W. M. Thackeray em meados do século XIX e que está na origem do filme de Stanley Kubrick, é considerado o primeiro romance sem um herói. O que fez dele uma escolha surpreendente na época (1975; foi o filme que se seguiu à agitação de Laranja Mecânica) mas óbvia à distância.
Tal como o livro, Kubrick, mais uma vez, não tem interesse em julgar o personagem central, mas em observar friamente cada episódio da ascensão e queda de Barry. A maioria das peripécias acontece fora de campo, com o narrador a matar qualquer suspense, anunciando muito antes do fim que Barry está condenado. Visto por Kubrick, Barry é antes do mais uma criatura que luta por sobreviver e triunfar, instintivamente e sem grandes pensamentos sobre o assunto. Isto é, não muito diferente, no fundo, do computador de 2001: Odisseia no Espaço.
Com um orçamento extravagante, rodado sem pressas ao longo de um ano, as cenas nocturnas e os interiores filmados com lentes especiais, inteiramente à luz das velas, Barry Lyndon é acima de tudo uma manifestação radical e absoluta do próprio Kubrick. A câmara de Kubrick, o ponto de vista de Kubrick, a composição dos planos de Kubrick, as naturezas mortas construídas por Kubrick, a impressão geral de que tudo no filme é uma consequência da vontade clara e férrea de Kubrick – isto é que é importante em Barry Lyndon.
O resto é a visão do mundo de Kubrick, gelada sobre o comportamento dos homens, mas sugerindo sempre, através das imagens que pacientemente criou para o filme, que a beleza, não sendo uma resposta, é pelo menos uma solução, muitas vezes a única. Não há muitos filmes assim.
Nuno Henrique Luz