[title]
No início de ‘Atomic Blonde – Agente especial’, passado poucos dias antes da queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989, Charlize Theron, que interpreta a agente do MI6 Lorraine Broughton, aparece cheia de contusões e feridas, a tomar um banho gelado. Acabou de regressar a Londres vinda de Berlim Leste, onde andou à pancada com agentes da polícia da RDA e da Stasi, foi agredida e alvejada por agentes da KGB e caiu à água dentro de um carro.
O filme baseia-se no comic The Coldest City e é o primeiro de David Leitch, um duplo que trabalhou, entre outros, no violentíssimo John Wick, com Keanu Reeves, e parece dizer que se uma mulher quer fazer de James Bond, então também tem que apanhar como James Bond. E não deixa de haver algo de incómodo na forma como Leitch trata a sua heroína.
Lorraine é um lindíssimo, sensualíssimo elegantíssimo saco de pancada ambulante, que leva, cai, levanta-se e responde na mesma moeda. Se Atomic Blonde – Agente Especial pretende de alguma forma conter uma mensagem “feminista”, fá-lo com tanta hipocrisia como perversidade.
Tal como Charlize Theron a interpreta, esta super-espia inglesa é uma fantasia cinematográfica de sadomasoquismo chic. Sempre impecavelmente vestida e maquilhada, ela sofre e faz sofrer, leva e dá sovas de meia-noite. Lorraine é uma Jane Bond via marquês de Sade e Sacher-Masoch.
O filme passa-se num ambiente de espionagem de Guerra Fria dos livros de John Le Carré ou Len Deighton, mas as semelhanças ficam-se por aí. Estamos no território do cinema de “arte e ensaio de porrada”, tão básico e bruto como o cinema de “ensaio de porrada”, situado um patamar mais abaixo e onde brilham nomes como Chuck Norris ou Dolph Lundgren, mas dispondo de um elenco de primeiro plano (além de Theron, aparecem James McAvoy, John Goodman, Toby Jones e Sofia Boutella), demais dinheiro, mais meios e melhor qualidade técnica. E ainda de uma banda sonora que alinha vários dos maiores hits dos anos 80, e onde não falta, obviamente, 99 Baloons, de Nena.
O enredo, contado em flashback, exige que Lorraine vá a Berlim Leste ajudar a passar para o Ocidente um agente da Stasi dissidente que decorou uma lista de agentes duplos, e a agente não pode confiar em ninguém, nem sequer no chefe da secção local do MI6, interpretado por um McAvoy com a quinta da cabotinagem metida.
Este é o cabide narrativo onde David Leitch pendura uma sucessão vertiginosa de sequências de acção vistosamente coreografadas, que nem sempre primam pela verosimilhança, com a excepção da que se passa num cinema onde está em cartaz Stalker, de Andrei Tarkovski, e da perseguição de carro do clímax, que não estaria deslocada num filme de 007 e culmina com um banho forçado nas águas geladas do rio Spree. A fita contempla também todos os clichés do género de espionagem de acção, incluindo os mais cínicos, e não dispensa os inevitáveis falsos finais, ou não fosse sobre agentes duplos.
Depois de Charlize Theron em Atomic Blonde – Agente Especial, a próxima actriz a interpretar uma agente secreta – no caso, do KGB–é Jennifer Lawrence em Red Sparrow, que se estreia em 2018. Resta saber se Lawrence vai emular ou mesmo superar Theron no que respeita a apanhar e dar pancada.
Por Eurico de Barros