São velhos filmes em Super 8, com bastante grão e a cor já desmaiada, rodados entre a década de 1970 e o início dos anos 80, que registam dez anos da vida de uma família francesa. As imagens são como as de milhões de outros filmes caseiros: as casas, os filhos que vão crescendo, os avós e os irmãos e as irmãs que entretanto já morreram, os natais e os aniversários, as férias de Verão ou na neve dentro de portas e no estrangeiro, os gatos e os cães, os eventos profissionais, mas também os sinais de uma crescente tensão entre marido e mulher, até que a família se separa e os filmes deixam de ser feitos.
O que distingue os filmes familiares mostrados em Annie Ernaux – Os Anos Super 8, que se estreia a 15 de Dezembro, é o terem sido rodados no seio da família da escritora francesa Annie Ernaux, Prémio Nobel da Literatura 2022. Na altura, Ernaux começava a escrever os primeiros livros, ao mesmo tempo que dava aulas em liceus e tratava do marido, Philippe Ernaux, e dos dois filhos pequenos do casal (a escritora, e um destes, David Ernaux-Briot, surgem na ficha técnica como os responsáveis pela realização), tendo também em casa a companhia da mãe viúva, uma mulher de outros tempos, que viveu a II Guerra Mundial e conservava vários hábitos desses tempos e da sua juventude.
É a autora de O Acontecimento e Uma Paixão Simples que narra Annie Ernaux – Os Anos Super 8, dando ordem e sentido a este pedaço do passado dos Ernaux, e da França em que viviam, que ficou para sempre registado em formato Super 8, contando, retroactivamente, a história da família ao longo da década em que foram rodados, e reflectindo sobre os sentimentos, alegrias, frustrações da mulher, mãe e escritora. E sobre os primeiros passos de uma carreira nascente na literatura, estando ainda muito longe de adivinhar a dimensão que esta tomaria.
Os admiradores e leitores de Annie Ernaux apreciarão especialmente Annie Ernaux – Os Anos Super 8 e farão as devidas associações à obra da escritora e à sua forte tendência autobiográfica. Os outros têm aqui um interessante documento sobre a vida de uma família da pequena burguesia com convicções de esquerda nos últimos tempos das chamadas “Trente Glorieuses”, os 30 anos pós-II Guerra Mundial, que foram tempos de grande crescimento económico, prosperidade e consolidação de uma classe média e de uma sociedade de consumo para a França.
E na qual, apesar dos seus sentimentos fortemente esquerdistas (votam Mitterrand embora preferissem Michel Rocard), os Ernaux participam e beneficiam, apesar de Annie Ernaux ir manifestando algum sentimento de culpa e uma certa má consciência social. Mudam de casa regularmente, sempre para melhor, fazem turismo no estrangeiro (algum dele “revolucionário”, como quando visitam o Chile de Salvador Allende, embora fiquem hospedados no Sheraton de Santiago), seja no Club Méditerranée em Marrocos, seja numa Albânia paupérrima e tristemente concentracionária (uma visita a Portugal no princípio dos anos 80 não deixa a escritora particularmente impressionada), vão para a neve (onde compram um pequeno estúdio numa nova urbanização), mas também passam alguns Verões com a irmã “rebelde” e lésbica de Philippe Ernaux, que vive com a namorada no campo, numa casa sem água, electricidade ou confortos básicos.
Enquanto isso, em redor deles, a França cresce, moderniza-se, massifica-se e muda, o centro-direita sai do poder que ocupava há várias décadas e dá lugar à esquerda. Annie e Philippe Ernaux acabam por se divorciar em 1981, após 17 anos de vida em comum. A máquina de filmar é arrumada, os filmes param de ser feitos e são guardados dentro de uma caixa durante muitos anos. Até reaparecerem em Annie Ernaux – Os Anos Super 8, quais espectros de celulóide, trémulos testemunhos de uma vida em conjunto que pertence para sempre ao passado, mas que eles não deixam ser esquecida.