[title]
Um bom melodrama, daqueles como se faziam na Idade de Ouro de Hollywood, de fazer chorar as pedras da calçada, de gastar uma caixa de lenços de papel inteira, de pôr a fungar até o crítico de cinema mais batido cínico, é hoje tão raro no cinema americano como uma comédia sofisticada ou um western sem má consciência. É por isso que os apreciadores do género devem acarinhar Anjos na Terra, de Jon Gunn, que ainda por cima foi tirado da vida real, ao basear-se (com algumas liberdades ficcionais para fins de eficácia narrativa) em factos ocorridos nos anos 90, em Louisville, no Kentucky, envolvendo os membros de uma família operária.
O filme começa com Theresa Schmitt a ter a segunda filha do casal, Michelle, que se vai juntar à irmã, Ashley. Jon Gunn dá logo a seguir um salto de cinco anos, e encontramos Theresa a morrer no hospital. O marido, Ed Schmitt (Alan Ritchson, da série Reacher), fica assim sozinho a criar as duas filhas, apenas com a ajuda da mãe. Ed é um operário especializado em revestimentos de telhados que se mata a trabalhar, e não só está ainda a pagar a enorme conta de hospital deixada pela mulher, como também tem que desviar boa parte do que ganha todos os meses para os cuidados de saúde de Michelle. A menina sofre de uma doença rara e está numa lista de espera para o transplante de fígado essencial à sua sobrevivência.
O dinheiro que vai todos os meses para casa dos Schmitt não chega nem por sombras para cobrir todas as despesas, e as contas e os últimos avisos de pagamento acumulam-se. Entra então em cena Sharon Stevens (Hilary Swank), uma cabeleireira que bebe demais e se recusa a ir aos Alcoólicos Anónimos; que teve uma infância infeliz e foi mãe muito cedo, de um filho que não lhe responde às mensagens que ela lhe deixa no telefone, de tal forma está ressentido por a mãe lhe ter dado uma infância tão má como a dela. Sharon lê no jornal local uma notícia sobre o estado da pequena Michelle, condói-se da menina e, num repente, decide fazer tudo o que puder por ela, também como forma de dar uma volta à sua vida, numa espécie de impulso altruístico que cobre um interesse próprio.
Para espanto – e algum incómodo – de Ed (mas não da mãe, que simpatiza de imediato com Sharon), esta estranha algo espalhafatosa e muito faladora irrompe na vida dos Schmitt. E vai mover montanhas, mexer mundos e fundos, angariar dinheiro, gerir a contabilidade da família, ajudar Ed a conseguir mais e melhores trabalhos e até mesmo o perdão de dívidas pesadíssimas (não sei se os autores do filme se esticaram demais, ou se Sharon conseguiu mesmo que o hospital privado onde Theresa esteve internada e morreu anulou uma conta quase meio milhão de dólares. Mas Hilary Swank consegue convencer-nos que sim).
Anjos da Terra mostra como é que pessoas comuns conseguem fazer coisas extraordinárias em prol do seu próximo, e elogia o altruísmo quotidiano, bem como a capacidade de uma comunidade mobilizar esforços, meios e de se unir pelo bem de um dos seus membros (ver o final durante a tempestade de neve). Mas o filme não conseguiria ser o que é, não fora a presença formidável de Hilary Swank como Sharon. Mostrando porque é que tem dois Óscares em casa, Swank interpreta o “anjo comum” (para nos referirmos ao título original da fita) que toma conta dos Schmitt com uma convicção, um optimismo e uma energia que levam tudo à frente. Sem escamotear os defeitos e os falhanços da personagem (mãe falhada e alcoólica crónica, que age também para tentar compensar os seus defeitos e redimir-se deles) no meio das suas qualidades e sucessos de obreira de milagres “civil”. É caso para dizer, e parafraseando o anúncio, quem tem Hilary Swank tem tudo.
Swank é bem coadjuvada por Alan Ritchson no lacónico e relutante Ed, um papel nos antípodas do seu Jack Reacher da série homónima, e apesar de accionarem todos as engrenagens do mecanismo sentimental do melodrama, e visarem inegavelmente um intenso e edificante efeito feel good final, Jon Gunn e os argumentistas Meg Tilly (sim, a actriz) e Kelly Fremon Craig evitam quer o excesso de sacarina e de melaço, quer o erro do abuso de exposição e demonstração no contar da história, e na forma como as personagens são caracterizadas e se relacionam (e a “mensagem” cristã vem embutida com discrição no enredo). Anjos na Terra é, de alto a baixo, e de onde quer que olhemos para ele, um título totalmente atípico na produção americana corrente. Além de demonstrar que, (muito) de vez em quando, os bons sentimentos podem dar bons filmes – e sem forçarem demasiado os sacos lacrimais.