A Minha Família Afegã
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Crítica

A Minha Família Afegã

4/5 estrelas
Nesta animação, Michaela Pavlátová conta a história de uma checa como ela que casou com um afegão e se mudou para Cabul, mas não foi feliz para sempre.
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A Time Out diz

Tem sido o cinema de animação, muito mais que o de imagem real, a mostrar a terrível realidade da vida em países como o Afeganistão, como podemos ver em A Ganha-Pão, de Nora Twomey, ou As Andorinhas de Cabul, de Zabou Breitman e Élea Gobbé-Mévellec. Enquanto aquele país, ou o Iraque e a Síria, têm vindo a ser usados como cenários para filmes de acção e de guerra, quase sempre de escassa qualidade, o cinema animado tem-se mostrado muito mais escrupuloso, eficaz e realista a mostrar as convulsões recentes por que passaram os afegãos sob a ocupação soviética, uma presença ocidental falhada, e especialmente debaixo da opressão obscurantista do fundamentalismo islâmico representada pelos talibãs, entretanto regressados ao poder.

A longa-metragem animada A Minha Família Afegã (que demorou três anos a chegar aos cinemas portugueses, apesar de ter sido premiada no Festival de Annecy em 2021, e recebido o César de Melhor Filme de Animação em 2023, entre outras recompensas), realizada pela checa Michaela Pavlátová, tem a particularidade de ser a primeira a incluir uma personagem ocidental na história. É baseada numa obra de ficção de uma compatriota sua, a jornalista Petra Prochazkova, casada com um afegão, e que encheu o romance de referências autobiográficas e de episódios passados com ela. 

Helena é uma estudante universitária checa desiludida com os homens que encontra, e em especial com os seus colegas. Assim que conhece Nazir, percebe que é o homem da sua vida, e porque não tem laços que a liguem à República Checa, viaja com ele para a Cabul pós-talibã. Lá, muda de nome para Herra, casa-se com Nazir e vai viver com a família dele, já que o marido é o seu único ganha-pão. Mas apesar de este, formado em Economia, ser mais liberal do que a maioria dos homens afegãos, tal como o avô, que era fotógrafo, Herra vai ter que aguentar toda uma série de choques culturais, a começar pelo seu estatuto de mulher afegã obediente ao esposo. E irá indignar-se com a situação das mulheres locais, nomeadamente com práticas como o casamento combinado de raparigas menores com homens muito mais velhos. É o que está previsto para a bonita, rebelde e coquete Roshangol, a filha mais velha do seu carrancudo e fanático cunhado.

A história de A Minha Família Afegã é contada do ponto de vista de Herra, que Michaela Pavlátová usa para mostrar, com realismo e dramatismo, as dificuldades, as injustiças e os absurdos de uma sociedade afegã onde o laicismo é um conceito quase inexistente, muito enfeudada a rígidas normas religiosas, e a tradições e costumes sociais altamente penalizadores das mulheres em vários aspectos. E que vão acabar por pesar também sobre o marido da protagonista, cujo comportamento para com ela irá alterar-se a pouco e pouco, como que contaminado pelo ambiente a que regressou. Herra não será feliz para sempre em Cabul, se é que alguma vez teve essa ilusão. 

A realizadora não transige com o esquematismo de exposição ou a preguiça demonstrativa e desenvolve as personagens, não as deixando ser clichés ambulantes e falantes da vitimização ou da diabolização (ver a evolução do comportamento de Freshta, a cunhada de Herra, a forma como Kaiz, o cunhado, se preocupa com os filhos, apesar do seu feitio agressivo e da estreiteza de vistas, ou como Maad, o rapazinho abandonado, vem aliviar as tensões da relação entre Herra, que não pode ter filhos, e o marido). 

A animação de A Minha Família Afegã é sóbria, com alguns fogachos de estilização, caso da sequência fantasiosa em que Herra e Roshangol andam de skate pelas ruas de Cabul, com os cabelos ao vento e acompanhadas por uma multidão de mulheres afegãs, e Michaela Pavlátová transmite-nos o sentido do lugar em que a história se passa de uma forma nítida e expressiva, e nunca rebuscada. Ela fez um filme animado humano, tolerante e compassivo, no melhor, mais genuíno e menos piedoso e postiço sentido destas palavras tão banalizadas.

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