[title]
Já tardava que o cinema português nos desse um filme como A Herdade, uma história familiar robustamente romanesca, de amplo fôlego dramático e com músculo cinematográfico, bem ancorada na realidade histórica portuguesa recente, apanhando o fim do antigo regime, a loucura revolucionária pós-25 de Abril e a acalmia democrática, e tendo no centro uma personagem forte, carismática e funesta. João Fernandes (um magnético e intenso Albano Jerónimo), um poderoso proprietário rural ribatejano, rei e senhor das suas terras e no seio da família, que resiste às pressões, primeiro do marcelismo decadente, e depois de uma revolução tresloucada. Mas a capacidade que este homem autoritário, voluntarioso, justo e mulherengo tem de enfrentar o mundo exterior e de o afeiçoar à sua vontade para defender, manter e fazer prosperar o seu pequeno império, é letal no mundo íntimo da sua família e dos seus próximos.
Construtor fora de casa, João Fernandes é um destruidor dentro dela, onde faz todos sofrer, da mulher, Leonor (magnífica Sandra Faleiro), aos filhos, passando pelos que lhe são mais leais. O que irá conduzir a família à implosão, a pequena comunidade que a rodeia à dispersão e a propriedade ao desmembramento – e tudo, ironicamente, em plena normalização democrática. Tragédia de um homem realizado na acção e falhado nos sentimentos, A Herdade integra na narrativa a paisagem em que se situa, vai beber ao western clássico e a um certo cinema italiano realista e social sem comprometer a sua identidade, e exibe um elenco bem escolhido e dirigido, irrepreensível e homogéneo, dos papéis principais aos mais pequenos. É cinema bom, íntegro, vigoroso, absorvente. E português.
Por Eurico de Barros