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Por coincidências de distribuição, A Estranha Comédia da Vida, de Roberto Andò, é o segundo filme a estrear-se em Portugal no espaço de meses sobre o Prémio Nobel da Literatura Luigi Pirandello. Mas se o primeiro, Leonora Addio, de Paolo Taviani, era bisonho e enredado em si mesmo, A Estranha Comédia da Vida é divertido, claro e linear na sua história e no seu propósito: oferecer uma explicação fantasiosa sobre a origem da peça Seis Personagens à Procura de Autor (1921), com a qual Pirandello revolucionou o teatro e que é uma das obras maiores da história da arte dramática.
Para isso, Andò, que é siciliano tal como Pirandello, e os seus colegas de escrita de argumento, Ugo Chiti e Massimo Gaudioso, mesclam factos verdadeiros e ficção logo desde o início. Facto: em 1920, o dramaturgo (interpretado por Toni Servillo) deslocou-se à Sicília, aonde não ia há bastante tempo, para celebrar os 80 anos de outro escritor, Giovanni Verga, seu mentor intelectual, e fazer um discurso em sua honra. Ficção: Pirandello fica retido na sua cidade natal por causa da morte da sua velha e querida ama, cujo funeral é adiado por causa de uma confusão tipicamente italiana, que tem que ser resolvida com um suborno.
Enquanto espera para acompanhar a ama até à última morada, Pirandello, que está em crise criativa, trava conhecimento com os dois cangalheiros que ficaram com a incumbência do funeral, Sebastiano e Onofrio (interpretados pelo duo de cómicos sicilianos Salvo Ficarra e Valentino Picone, popularíssimo em Itália), que tutelam a companhia de teatro amador local e estão a ensaiar um novo espectáculo. Os problemas e enredos pessoais dos actores e das actrizes do grupo acabam por verter para a peça, e a estreia redunda numa enorme confusão, com o elenco a comentar na direcção da plateia, e esta, por seu lado, a invectivar os intérpretes.
Isto dá ao autor de O Falecido Matias Pascal a ideia para a sua peça inovadoramente metateatral e que abate a barreira convencionada entre o palco e o público, na qual seis personagens rejeitadas pelo seu criador invadem o ensaio de uma peça e tentam convencer o encenador a utilizá-las. O filme volta depois à realidade, recriando a agitada estreia de Seis Personagens à Procura de Autor em Roma, que dividiu radicalmente o público presente, parte do qual ovacionava Pirandello e chamava-lhe “génio”, enquanto a outra parte o insultava e pedia o seu internamento, gritando “Manicómio!”. (Andò tem a boa ideia de pôr Sebastiano e Onofrio a assistir a essa histórica representação, e a não perceberem nada do que viram, embora mantenham intacta a sua admiração pelo autor).
Além de dar em A Estranha Comédia da Vida uma explicação alternativa plausível para a génese da peça – para a qual contribuem muito as interpretações de um Servillo que se submerge na figura de Pirandello, e do castiço duo Ficarra/Picone nos gatos-pingados com pretensões teatrais –, Roberto Andò consegue também, através da peça dentro do filme, falar da relação entre o público e o espectáculo a que está a assistir, e das diferentes reacções daquele quando lhe é apresentado algo de diverso do convencionado, ou que rompe por completo com estas convenções, abalando os hábitos e confundindo as expectativas dos espectadores.
O filme tem ainda um gostinho de “comédia à italiana” tradicional, dado pelos subenredos e equívocos amorosos e de adultério, pela caracterização das personagens secundárias e pelas hilariantes sequências de ensaio do grupo de amadores. A Estranha Comédia da Vida é um filme sobre teatro que não se esquece que também tem que ser cinema. Palpita-me que Luigi Pirandello teria gostado.