Voador Tecelagem, Artesãos, Rio de Janeiro
Divulgação Voador Tecelagem
Divulgação Voador Tecelagem

A nova geração de artesãos do Rio de Janeiro

Cerâmica, marcenaria, joalheria, flores, ladrilha. Colocamos a mão na massa e fomos descobrir o que a nova geração de artesãos do Rio anda fazendo.

Renata Magalhães
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O mundo está mudando – movimento tão importante quanto necessário frente a tanto impacto socioambiental negativo nos últimos tempos. Com o futuro na mira, chegou a hora de repensar o consumo desenfreado e recuperar ofícios que fazem parte da nossa tradição. Ou trazer aspectos mais sustentáveis para os meios de produção. A verdade é que criar com as mãos é uma das coisas mais bonitas que o ser humano é capaz de fazer, ainda mais quando às técnicas artesanais se juntam ao design contemporâneo. O resultado são peças únicas e exclusivas, cheias de história por trás e capazes de fazer repensar aquilo que é descartável no chamado "fast shopping". Descobrimos o que está sendo produzido nas oficinas do Rio e chegamos a 13 nomes que devem ser acompanhados de perto. São artistas que encontraram no trabalho manual uma profissão e um estilo de vida, que produzem em pequena escala e são felizes por sujar as mãos todos os dias. 

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Mãos à obra

Amanda Gonze

Exorcismo artístico 

"Gosto muito de trabalhar com a imperfeição". A frase da artista Amanda Gonze, de 30 anos, é sobre uma de suas obras: um espelho quebrado emoldurado por uma cerâmica pintada. "Muitos artistas não conseguem terminar um trabalho porque ficam presos a uma expectativa, mas esquecem que ela só existe dentro deles, não em quem vai ver aquilo", pontua, certeira. 

A jovem de Nova Iguaçu começou a pintar quase por acaso, durante a pandemia. Antes disso, ela chegou a ter uma banda chamada Flores para Ramona, mas não costumava colocar a mão na massa – pelo menos não literalmente. Procurando formas de se distrair no isolamento, começou a pintar telas coloridas, que logo caíram no gosto de amigos. Postagem vai, postagem vem, as redes sociais começaram a bombar e ela percebeu que isso poderia ser um trabalho.

O próximo passo foi materializar tudo. "Sempre gostei de stop motion e comecei a ter vontade de criar coisas para serem tocadas", lembra ela, que mergulhou no mundo da cerâmica e começou a produzir as peças que ganhariam suas pinceladas. Em seu variado acervo, além de molduras, tem objetos decorativos, candelabros, incensários, cabideiros e o que mais a imaginação permitir. "Aprender nunca é demais e quero explorar tudo o máximo que eu puder", garante Amanda. 

Quando criança, inspirada pelo universo do Studio Ghibli, adorava desenhar mangás. Não à toa, seus traços tem um toque oriental, mas também trazem muita brasilidade. A artista, inclusive, foi contemplada para participar do Jaguar Parade, realizado no Rio este ano, e a onça pintada por ela ganhou o nome de “Delírio Tropical”, embelezando por semanas o Village Mall antes de ser leiloada. 

Quando o processo é autoral, Amanda costuma criar seres que chama de Gonzitos – uma referência ao seu sobrenome. “Durante a quarentena, fiz muita terapia e a minha psicóloga dizia que eu precisava colocar os meus demônios para fora. Foi exatamente o que fiz”, lembra. Pois quem vê de cá, só enxerga neles perfeição. 

Camilla Fernandez

Curvas cheias de personalidade

Um anel que serve como cinzeiro. Um colar que também é um porta-isqueiro. As joias-objetos são a nova tendência que a ourives Camilla Fernandez vem explorando em seu ateliê. “Acessórios são uma forma de imprimir ao mundo quem nós somos, sem precisar falar nada. Por isso, busco caminhos menos óbvios e tão amplos quanto as nossas gamas de personalidades”, explica a artista de 34 anos. 

Nascida em Brasília, ela veio morar no Rio em 2016, quando começou um curso de joalheria, pois queria aprender a mexer com resina. Bastou serrar a primeira chapa de latão para saber que queria fazer aquilo para sempre. Aprofundou os conhecimentos com vídeos na internet e, principalmente, com os erros e acertos no desenvolvimento das peças. 

Depois de mais algumas andanças, em 2019, Camilla fixou residência permanente na cidade, onde mora em Santa Teresa com o marido, o também artista Lucas Stirling. Os dois dividem um ateliê na casa e compartilham seus desenvolvimentos criativos. “Gosto de priorizar a história da peça ao acabamento. Até faço encomendas, mas, quando meu trabalho vem do improviso, ele se mantém muito mais fiel ao processo”, frisa ela.  

A matéria-prima é sempre de lugares sustentáveis. Enquanto a prata vem do reaproveitamento de chapas de raio-x (isso mesmo), o ouro só chega de pequenas empresas com certificados que garantem a regularidade dos mineradores e o comprometimento com o meio ambiente. “Estou preferindo trabalhar com o latão, que já foi muito desvalorizado e hoje está em alta por ser mais acessível, além de ter uma cor linda”, compara Camilla, que é bastante conhecida no mercado por suas jóias de rosto.

Na tentativa de sair de uma joalheria clássica, ela anda se debruçando também sobre o estudo de outras partes do corpo para adornar, como nariz, panturrilha, coxa e cotovelo. “Estou entendendo as curvas da anatomia para descobrir a melhor forma de valorizá-las, mantendo o conforto”, explica. Pode até ser um clichê, mas já dá para saber que vem coisa boa por aí.  

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Fernanda Moreira

Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar

Olhares mais atentos já viram pelos muros do Rio uma arte que consegue ser, ao mesmo tempo, delicada e potente. São pequenos azulejos de fundo branco com mensagens gigantescas escritas por Fernanda Moreira – "Eu me perdoo", "Não existe medo agora" e "De tudo, tem o que fica" – e assinatura com o nome do audacioso projeto: Ladrilha.

“Desde criança, encontrei na literatura a companhia para me sentir menos só”, lembra a carioca de 36 anos, que começou a escrever na adolescência e fez disso uma profissão. Formou-se em jornalismo, mas almejava formas diferentes de espalhar suas palavras, para que atingissem pessoas com os mais diferentes repertórios de vida. A saída: ocupar as ruas, com muito afeto.

Ao buscar uma identidade que fosse poética e bonita, pensou nos azulejos. Começou por Vista Alegre, bairro onde nasceu e cresceu na Zona Norte, expandiu para Centro e Zona Sul, fez a ponte aérea para São Paulo e chegou até mesmo em Nova York. São mais de 300 obras coladas mundo afora. 

Fernanda tira as mensagens de textos maiores, escreve cada uma delas à mão com uma caneta especial e coloca as peças para queima em um forno em sua própria casa na Gávea. “Busco muros com intervenções mais antigas e lugares onde as pessoas passam mais tempo, como pontos de ônibus”, diz ela, que tem o desejo de se embrenhar mais pelo subúrbio. “As obras têm 16 centímetros, por isso estabelecem um diálogo muito individual com cada um, diferente de um outdoor”.  

O delicado trabalho deu origem ao livro “Mar é sempre beira pra quem tem medo de fundo” (Editora Crivo, 40 reais) e um próximo livro será lançado em outubro, na Flip, chamado “Tem coisa que eu não te disse” (Editora Janela, 25 reais). Ela também ministra oficinas de escrita, tanto para quem quer aperfeiçoar a relação com as palavras, quanto para crianças que desejam trabalhar mais o lado artístico da ladrilha. “A sustentabilidade de uma sociedade também está ligada à regeneração da educação e da cultura”, acredita. Nós também. 

Flávio Maggessi

Caiu na rede, é pintura

Quando não está no posto trabalhando como salva-vidas, o carioca Flávio Maggessi, de 48 anos, promove passeios de barco e atividades como stand-up paddle em Barra de Guaratiba. Ele aproveita essas saídas para procurar, perdidas em alto-mar, as "telas" onde desenvolve um interessante trabalho de pintura: restos de barcos.

Isso mesmo. Ao invés de uma canvas branca, o artista aplica seus traços de tinta acrílica em pedaços de madeira que acha perdidos pela Restinga da Marambaia. "Isso faz das obras únicas, pois cada uma tem uma cor e um formato, de acordo com o tempo que passou na água", explica ele, que é conhecido entre os amigos e clientes como Gordinho.

A ideia veio depois de uma viagem para Ilha Grande, onde viu um projeto parecido. E lá se vão mais de 15 anos desde as primeiras pinceladas. Segundo ele, o sal do mar faz com que as peças sejam muito resistentes e nem é preciso esperar secar muito tempo antes de começar os trabalhos, que ele faz em casa. "Temos um plano de abrir um ateliê para reunir todas as mentes criativas da região", adianta.

Parte de seu acervo está exposta no restaurante Mirante da Prainha, no Recreio. O meio gastronômico, aliás, não lhe é estranho. Ele foi apadrinhado por Ubiratan de Souza Leal, mais conhecido como Bira, que tem um dos melhores restaurantes com vista do Rio. O chef, que também foi salva-vidas, é conhecido pelo trabalho de artesania de pranchas de surf – além, é claro, de sua inconfundível moqueca. "Meus amigos artistas foram a minha maior inspiração", conta Gordinho.

Recentemente, ele vem se debruçando sobre outros tipos de trabalho, como móbiles feitos com os pedaços de madeira – que ele prende juntos no exato estado em que foram encontrados, evidenciando assim a riqueza de formatos por conta da erosão. “O único problema é que esse material está acabando na região, quase não se encontra mais. Mas eu vou continuar sempre fazendo a minha arte”, promete.

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Gustavo Siqueira

O papel dos amigos imaginários

Quando era bem pequeno, Gustavo Siqueira fazia arte antes mesmo de saber o que era arte. Vivia pintando com lápis de cor e pegando embalagens de produtos da cozinha para transformar em brinquedos ou bichinhos. Bichinhos esses que até hoje estão presentes no seu trabalho.

O jovem carioca de 27 anos investiu em cursos, aprendeu a fazer adereços de cena para espetáculos teatrais, até encontrar a paixão no papel marchê. Em seu acervo, podem ser encontrados vasos, objetos, espelhos e quadros. Isso sem falar na série “Amigos Imaginários”, que faz referência aos companheiros de infância. “Meu objetivo é nunca repetir um formato”, afirma Gustavo, que tira a inspiração das curvas da natureza. “Olho um cogumelo ou um ouriço e já penso logo em traduzir aquilo nas minhas criações”.

Recentemente, é o mar que mais tem inspirado as peças da sua marca, Amarlungo, nome pelo qual ele passou a ser conhecido e decidiu adotar. A palavra foi adaptada de uma música da cantora Luedji Luna, chamada "Saudação Malungo". “Fui pesquisar e descobri que significa companheirismo, força e ancestralidade. Juntei algumas letras para trazer também o ‘amar’ e o nome surgiu antes mesmo de eu começar a desenvolver o trabalho que tenho hoje”, lembra. 

As primeiras obras, nascidas em 2022, foram expostas na Feira do Lavradio, no Centro, e fizeram bastante sucesso. Tanto que Amarlungo foi chamado para expor de forma fixa em uma loja colaborativa de São Paulo. Por aqui, só é possível conseguir um de seus trabalhos pelo site ou sob encomenda. 

É dentro de sua casa, em Madureira, na Zona Norte, que ele produz tudo, reutilizando papeis que seriam descartados. O material vem de gráficas parceiras da redondeza e também de amigos professores. Ele agora já está investindo em novas experimentações: as próximas peças em produção são luminárias e esculturas em larga escala. "Minha mente é inquieta, repleta de ideias que se materializam na forma desses objetos", conclui ele.

Julia Massari

A arte do ensino

Quase ninguém sabe, mas em uma das ruas mais movimentadas da Tijuca há um verdadeiro refúgio, onde o relógio parece bater em outro tempo. Uma vila arborizada na Rua José Higino é endereço para o Ateliê Juma, tocado por Julia Massari desde 2022. A jovem ceramista de 32 anos sempre teve interesse por trabalhos manuais, mas o amor pelo barro veio mais tarde, quase por acaso.

“Não sabia que isso era algo possível para alguém que não fosse do meio das artes plásticas”, lembra ela, que trabalhava com audiovisual quando foi chamada para fazer um curso junto a uma amiga, em 2017. “Na primeira vez que peguei uma peça pronta, criada por mim, tive um sentimento forte de empoderamento, como se não houvesse nada nesse mundo que eu não pudesse fazer”.

Naquela época, a vida da carioca passava por profundas mudanças: tinha acabado de mudar de emprego e sair da casa do pai para morar sozinha, quando, um mês depois, ele veio a falecer. A cerâmica então virou um processo terapêutico. Através daquele trabalho manual, Julia conseguia externalizar pensamentos e sentimentos que estavam borbulhando dentro dela. 

Em 2020, veio o convite de uma antiga professora para dar aulas, mas a pandemia tinha outros planos. No período de isolamento, criou um ateliê que coubesse o forno para queima das peças e decidiu seguir com o projeto de ser professora. Logo buscou um espaço que comportasse melhor a demanda e hoje já tem cerca de 80 alunos. Nesse meio tempo, ainda foi mãe de João, que agora tem dois anos. 

Sempre suja de poeira e barro (“As pessoas devem achar que trabalho com obra”, diverte-se), ela traça um paralelo interessante entre seu trabalho e a sustentabilidade: “Quando as pessoas descobrem que têm capacidade de fazer uma louça, dificilmente elas vão querer comprar. Isso gera um consumo mais consciente, além da valorização dos pequenos produtores locais”, afirma. Dentre suas produções preferidas, estão itens de design, sempre com uma estética bastante autoral.  

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Manu Almeida

Nenhum nó sem ponto

Se dizem por aí que a maçã nunca cai muito longe da árvore, Manu Almeida é uma prova viva disso. Seu dom é herança do lado do pai, que é artesão e ourives, filho de uma costureira de mão cheia. Com ele, descobriu o macramê. Com a avó, aprendeu a coser. Mas foi só em 2021, quando saiu de um emprego como arquiteta, que a carioca de 34 anos, nascida em Niterói, misturou tudo e arriscou dar vida às próprias peças.

Na sala de seu apartamento onde mora hoje, em Botafogo, transformada em ateliê, ela desenvolve uma arte têxtil em grande escala, que mistura cordas, cerâmicas e outros materiais naturais. O resultado se divide em duas vertentes: uma pegada mais artística, como as instalações produzidas recentemente para uma exposição no Centro Cultural dos Correios; e outra mais comercial, com produtos como cadeiras, esculturas de parede e até réguas de tomada (que ganham um charme especial com uma corda náutica trançada a mão). 

“A interseção entre os dois são os quadros, que faço sob encomenda, mas estou sempre estudando novas possibilidades”, diz Manu, que busca as fibras naturais com pequenos produtores e está sempre reaproveitando o que sobra, inclusive lançando coleções feitas inteiramente com os resíduos. Segundo ela, as fases da vida têm forte influência sobre o seu trabalho: “Artesãos transferem tudo para as mãos, então o nosso estado de espírito é muito traduzido no que estamos fazendo”. 

Engana-se, no entanto, quem pensa que os trabalhos manuais são só calmaria e inspiração. Ainda que tenha começado com processos bastante imersivos, na medida em que aquilo virou um trabalho, a necessidade passou a pautar o relógio. “A questão do tempo é muito complexa. Temos que achar um equilíbrio entre o ócio criativo e o empreendedorismo, e as pessoas, enquanto admiradores ou compradores, precisam entender melhor isso também”, acredita.

Maria Fauvel

Quando a zoeira vira arte

A carioca Maria Fauvel sempre gostou de colecionar fotos antigas, que eram garimpada em feiras, doadas por amigos ou encontradas nos camelôs e shopping-chão pela cidade. "Vai que um dia eu faço algo com isso", pensava ela, que descobriu a vertente artística ainda criança e ficava desenhando pelas paredes, para o desespero de sua mãe.

Um dia, pegou uma das imagens e fez uma intervenção: era uma menina mimetizando deuses indianos com vários braços atrás dela, e Maria escreveu "pra te dar todos os tapas que você merece". "Meu namorado tinha me traído na época, então foi uma maneira de botar fora o sentimento sem chorar muito por isso", lembra. Tudo era feito no paint, programa de edição bem simplório presente em todos os computadores, daí o futuro nome do projeto, Paintzoas.

A imagem fez sucesso no Facebook – o ano era 2014 e a rede social ainda era cool –, o que motivou a criação de outras obras. O número de seguidores foi crescendo e o campo de atuação também. Além das fotos, Maria também desenvolveu séries com personagens de palitinho, com desenhos animados e com bichinhos, todos cheios de crises existencialistas (em sua maioria compartilhadas com a autora de 34 anos).

"Comecei a pensar algumas formas de desvirtualizar e monetizar o Paintzoas e fiz vários produtos, como camisetas e ímãs, que sempre fizeram muito sucesso", lembra. Como nela o talento manual se manifesta de várias formas, aproveitou o lado bordadeira para lançar uma coleção de calcinha de vovó (aquelas bem grandes) com frases costuradas. "Não me diga mentirinhas, dói d+", "Menos otária, mas não experta o suficiente" e "Eu vou aparecer bem no meio do seu sonho" são algumas delas.

Maria trabalha em casa e pintou o ateliê inteiro de rosa choque, o que acredita dizer muito sobre sua personalidade. Boa parte de sua vida é compartilhado e ela diz gostar de levar o projeto para passear. Cozinheira em um dos restaurantes premiados pela Michelin no Rio, o Oro, desenvolveu uma série sobre a sua rotina. "A cozinha é um lugar bem específico, com cores, texturas e metodologias para chegar ao melhor conjunto entre sabor e conceito. O desenho e o bordado têm a mesma coisa: é preciso entender o que se está buscando e descobrir os processos para chegar até lá", compara.

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Pedro Galaso

Foco, fé e… arte

Adepto à religião umbanda desde criança, o artista plástico Pedro Galaso, de 35 anos, descobriu através de processos de regressão ter sido um cigano ceramista em outras vidas. Uma possível explicação para o desempenho natural logo que entrou em um curso de cerâmica, em 2020, influenciado pela sua psiquiatra. “Foi paixão à primeira metida de mão no barro”, brinca ele, arquiteto de formação, que estava em busca de formas para controlar o fluxo mental vindo do seu transtorno de déficit de atenção. 

Coordenador do curso de Design Mobiliário no Istituto Europeo di Design (IED Rio), ele quis aprofundar ainda mais os conhecimentos e se matriculou em aulas do Parque Lage sobre artes visuais. Foi então que estudo, processo terapêutico e religião se misturaram no caldeirão criativo e o resultado pode ser visto nas peças que ele desenvolve desde o ano passado no ateliê em seu apartamento, no bairro de Copacabana.

A série Atotô faz referência a uma saudação ao orixá Obaluaiê, que tem o poder da cura através das suas palhas. O design exclusivo dá vida a trabalhos carregados de significado cultural, que incluem mesas e esculturas pendentes. A próxima coleção já tem homenagem definida: será para Oxum, sua orixá de cabeça (aquela que rege a atual encarnação da pessoa). “Tiro mais satisfação em fazer peças únicas do que ficar na repetição do design de móveis, então uma vertente acaba complementando a outra”, garante ele, que gosta de se debruçar em uma criação de cada vez. 

A matéria-prima vem de um único fornecedor, e também é reaproveitada de peças antigas quebradas de seu acervo. “Se a cerâmica não é queimada, ela pode ser reciclada eternamente. Gosto de trabalhar com misturas para atingir novas tonalidades”, explica Pedro sobre o caráter sustentável de seu negócio. Ao encontrá-lo por aí, prepare-se. O rapaz está sempre coberto de argila e traz uma afirmação curiosa sobre o material: “barro seco é excelente para a ressaca, suca todo o álcool”. Palavra de mestre. 

Pedro Leal

Farpas nas mãos e serragem no corpo

O endereço do ateliê em Niterói fica logo na saída da ponte que faz ligação com o Rio de Janeiro, por isso o marceneiro Pedro Leal passa mais tempo do lado de cá do que de lá. “Metade do meu trabalho é garimpo e busco muita coisa no Centro, que está passando por um processo forte de transformação”, explica. Sempre que passa por uma obra, pergunta aos responsáveis se há material para ser retirado. E não é incomum vê-lo em cima de caçambas resgatando peças que iriam para o lixo. 

“O Rio foi a capital do Império e há por aqui madeiras que não existem em nenhum outro lugar”, garante. Dia desses percebeu manusear ripas datadas de 1888 – ano em que foi promulgada a Lei Áurea. “Provavelmente quem fez aquela construção trabalhava em condições horríveis e tive a honra de ressignificar e dar uma nova realidade para aquilo”, celebra, parafraseando o mestre japonês Morito Ebine, que fala sobre as várias vidas que vive uma madeira.  

O jovem de 32 anos nasceu em São Paulo, mas mudou para terras fluminenses com 18 anos. Formou-se em publicidade, virou redator e chegou a trabalhar em Nova York, antes de se perceber saturado. Decidiu seguir os passos do avô, que aprendeu com os livros a fazer projetos de arquitetura. Em 2017, Pedro abriu sua primeira oficina e passou a ter controle sobre seus processos do início ao fim – o que ele garante tê-lo salvado de um burn out. 

Agora ele compartilha o charmoso espaço de trabalho com Marcos Husky, da Experimental Design, e com Guilherme Sass, da Casa na Árvore, além de seu fiel escudeiro, o bull terrier Paçoca. Isso sem falar no grupo extenso de marceneiros com quem costuma até viajar, e cujo principal assunto, sim, é a madeira. Saíram as peças publicitárias, entraram as farpas nas mãos (que ele garante nem sentir) e a serragem que teima a ficar pelo corpo todo (e que os amigos já fingem não ver mais).

Recentemente, Pedro vem trabalhando com uma técnica japonesa chamada shou sugi ban, que usa o fogo como acabamento, resultando em peças de tonalidade escura. As últimas mesas em preparação vão para uma galeria na Espanha e para o primeiro Hotel W de São Paulo. “É uma peça que estou gostando muito de fazer. A última que finalizei foi para Dubai, para a abertura da primeira Farm, pois eles acharam que representava bem o Brasil”, conta. Nenhuma discussão por aqui. 

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Renata Navarro

Bem me quer, mal me quer

Três vezes por semana, antes dos primeiros raios de sol, Renata Lima chega no Cadeg, maior entreposto de plantas do estado, em busca do carregamento trazido por mais de 200 produtores de todo o Brasil. Em meio a uma confusão generalizada, ela seleciona as espécies que vão adornar arranjos por toda a cidade. Desde 2020, ela toca a Botaniê Flores, que nasceu de forma despretensiosa durante a pandemia.

“Os meses de isolamento fizeram com que todo mundo olhasse para dentro de casa”, afirma ela, que buscou no verde uma forma de animar o ambiente e a própria vida. Bastou um post nas redes sociais para que amigos começassem a se interessar e assim foi descoberto um novo dom. Na época, havia acabado de ser mandada embora de um emprego na área de marketing. 

Os primeiros pedidos profissionais – infelizmente – vieram de pessoas que haviam perdido entes queridos para a Covid-19. Depois, quando as coisas começaram a reabrir e a vida voltava a ter toques de normalidade, eles passaram a ser voltados para momentos de celebração. “Um dos meus arranjos foi fotografado dentro do Copacabana Palace e isso gerou um boca a boca que espalhou meu trabalho”, celebra Renata, que hoje atende marcas como Prada, Farm e Yves Saint Laurent, além do hotel cinco estrelas.

A florista de 42 anos mora em Copacabana, mesmo bairro onde mantém seu ateliê, que hoje já conta com seis funcionários. O local está sempre apinhado de plantas e flores, inclusive espécies diferentonas, que os fornecedores do Cadeg já avisam de antemão que irão chegar. Mesmo com uma equipe, Renata fica à frente da produção e é justamente nesse momento que diz se sentir mais presente, em meio a uma rotina um tanto caótica. 

Além de fornecer para grifes e lojas, a empresária também oferece um serviço de assinatura (quem tem muita adesão de empresas) e monta mesas em festas. “Tenho adorado fazer esse trabalho mais artístico, que foge um pouco do dia a dia. Gosto muito da ideia de intervenção e ainda tenho projetos para concretizar nesse sentido”, adianta ela. Que desabroche em breve. 

Valentina Stefani e Patrick Gondim

Muito mais do que tapetes mágicos

A inspiração para cursar moda veio da mãe, que é figurinista, e foi no final da faculdade que Valentina descobriu a tecelagem manual. Aprofundou os conhecimentos em um curso técnico na Suécia e aproveitou o auxílio estudantil para comprar uma máquina de tear – que voltou com ela para o Brasil. A jovem já tinha estagiado para marcas como a Osklen e decidiu abandonar a carreira fashionista para se dedicar de corpo e alma ao artesanato. 

Assim, no final de 2016, surgiu a Voador Tecelagem, com peças de tapeçaria feitas por encomenda. Tudo ia muito bem até que, com a chegada da pandemia, o namorado Patrick Gondim foi mandado embora de seu trabalho como designer de calçados. Os dois decidiram unir forças e ele entrou como sócio no negócio, que passou por uma grande reformulação.

“Desenhamos novos produtos, criamos um site e relançamos a marca com uma nova operação”, lembra a carioca de 31 anos. Desde então, eles trabalham com pronta-entrega e uma gama bem maior de variedades: tapetes maiores para piso, mantas e almofadas, pinturas, pôsteres de serigrafia e até mesmo uma linha de porcelana. “Misturamos o artesanal com outros meios de produção”, explica.

A identidade visual da marca traz cores vibrantes, uma mistura entre abstrato e figurativo, e uma boa dose de bom humor. “Essa foi uma contribuição forte do Patrick”, afirma Valentina, que está à frente do processo criativo e da parte financeira, enquanto o namorado cuida do contato com os fornecedores. Eles ainda têm dois funcionários e terceirizam parte da produção para tecelãs de Minas Gerais, São Paulo e da Região Serrana.

O casal trabalha em um ateliê em Botafogo, onde também há uma loja com alguns produtos, a Lado Sobrado, que eles dividem com outras marcas artesanais – o Projeto Fio, que capacita mulheres do Rio através do bordado, e o Ateliê Cura, que trabalha em parceria com crocheteiras maranhenses da palha do Buriti. O Voador Tecelagem também foca em materiais naturais, usando fornecedores de todo o Brasil.

“Não precisamos de mais plástico no mundo, por isso, mesmo quando usamos sintético, tentamos que seja o mais sustentável possível”, explica Valentina, citando o econyl, um tipo de fio de nylon regenerado que vem de resíduos no mar, como redes de pesca. “Tentamos ser o mais sustentável, mesmo que isso torne os processos mais custosos, e ainda assim, temos como objetivo ser o mais acessível possível para o consumidor final”, finaliza. 

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Victor Xavier e Soeren Hallberg

Do lixo ao luxo

Durante um intercâmbio na cidade, em 2017, o dinamarquês Soeren Hallberg, 34 anos, engatou em um relacionamento com o carioca Victor Xavier, 29 anos, e decidiu fazer do Rio sua residência permanente. Alguns anos depois, a pandemia chegou e eles buscaram um hobby para fazer na quitinete onde moravam na Lapa. Começaram então a trabalhar com cimento e deram vida a objetos utilitários, como vasos, bandejas, porta-copos e espelhos. 

Foi o retorno positivo das pessoas que fez a dupla perceber que aquilo poderia virar algo a mais. Curiosos, decidiram ampliar a pesquisa. Vale explicar: enquanto o concreto é uma mistura de cimento, água e agregados convencionais, como areia e brita, o casal decidiu trabalhar com a granilite, que traz para a mistura outros elementos. E aí até cascas de ostras entraram na jogada. “Estamos sempre querendo experimentar e isso é só o começo”, promete Victor. 

Assim, em 2021 surgiu o Assimply Studio, empresa batizada com a mistura das palavras "assemble" (que significa montar) e “simplicity” (traduzido para simplicidade). As peças, que ganharam maiores proporções, usam material que iria para o lixo em sua composição. Isso inclui vidro que seria descartado de uma fábrica em Minas Gerais, entulho de obras encontrado pelas ruas, pedras que sobram de uma marmoraria e plástico, como tampinhas de garrafa.

O ateliê da dupla fica na Gamboa, próximo à Praça da Harmonia, no térreo de um pequeno prédio. “Nós moramos no terceiro andar, por isso o trabalho é muito ligado ao nosso dia a dia. Em breve queremos abrir o segundo andar para um showroom e fazer vários eventos”, adianta Victor, que também fez uma parceria com os catadores do entorno para receber alguns materiais. 

Recentemente, a dupla apresentou a cadeira LT no Salão de Milão, composta por restos de madeira obtidos com um coletivo de marceneiros e granito Azul Bahia, que veio (acredite se quiser) de uma caçamba pela cidade. “Pensamos em projetos que unem restauro radical com novos conhecimentos e uso inteligente de matérias-primas para um futuro mais consciente. Queremos dar uma nova vida ao que seria descarte”, resume Victor. 

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